No segundo semestre do ano passado, impulsionados pela efervescência social ocasionada pelas Jornadas de Junho, decidimos, em reunião de pauta da redação, dedicar uma série de reportagens à questão da democracia participativa. Pretendíamos, desse modo, refletir sobre como toda aquela energia presente nas ruas do país poderia ser canalizada para mecanismos de participação contínua que levassem às transformações almejadas por tantos brasileiros. Coube a mim a tarefa de desenvolver três matérias sobre o assunto, que foram publicadas nas edições de outubro, novembro e dezembro de 2013.
Montagem: Giceli Valadares
Na primeira delas, intitulada “O Brasil continua em nossas mãos”, mencionei o projeto do governo federal de instituir, até novembro daquele ano, a Política Nacional de Participação Social (PNPS), o que acabou não acontecendo. Há menos de duas semanas, porém, o projeto foi oficializado por meio do Decreto 8.243, de 23 de maio 2014, com o objetivo de “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, segundo seu artigo primeiro.
O decreto define como sociedade civil: “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações” e estabelece instâncias de participação, tais como conselhos, conferências, ouvidorias, mesas de diálogo, consultas públicas, audiências públicas e ambientes virtuais de participação social.
Vale a pena ler o texto completo para perceber quão injustificável é o tom alarmista adotado em alguns editoriais a respeito do assunto, como “Mudança de regime por decreto”, do jornal O Estado de São Paulo, e “Dilma decidiu extinguir a democracia por decreto. É golpe!”, do colunista Reinaldo Azevedo, da revista Veja.
Se, por um lado, é válida a crítica à instituição da PNPS por meio de um decreto, sem a participação do Congresso, por outro, é no mínimo desonesto afirmar que tal política representa uma ameaça à democracia. Em tempos de crise de representatividade, a criação de mecanismos que aproximem os cidadãos dos processos decisórios e da gestão de políticas públicas (muitos dos quais já existem, aliás) deveria ser acolhida como um aliado e não como ameaça à estabilidade institucional.
Ao interpretar o texto da PNPS, não se pode fazer vista grossa aos artigos terceiro e quarto, que afirmam que entre suas diretrizes estão a “complementariedade, transversalidade e integração entre mecanismos e instâncias da democracia representativa, participativa e direta” e o aprimoramento da “relação do governo federal com a sociedade civil, respeitando a autonomia das partes”. Nada, portanto, que coloque em risco a necessária liberdade de ação de nossos representantes, como afirmam os editoriais supracitados.
Complementariedade e relação. Duas palavras fundamentais para pensar e agir politicamente nos dias de hoje. Eu acrescentaria, ainda, diálogo, também muito presente no texto do decreto em questão. A partir delas é possível compreender tanto a importância de uma iniciativa como a PNPS quanto a indignação de alguns partidos quanto à sua instituição por decreto.
“Não somos contra os conselhos, mas isso precisa ser criado por projeto de lei ou por outra medida do Legislativo. A presidente passou por cima da nossa competência”, afirmou à Folha de São Paulo o deputado Mendonça Filho (PE), líder do DEM, que apresentou na semana passada um projeto de decreto legislativo que susta os efeitos do decreto presidencial. Ele tem o apoio de seis partidos da oposição (SDD, PV, PSD, PSB, PPS, PSDB) e dois da base governista (PROS e PR).
De fato, soa contraditório instituir por decreto uma política pública que preze pela complementariedade e pelo diálogo. Não se pode perder de vista, porém, a necessidade de aprofundamento da relação entre as diversas esferas de governo e a sociedade civil, nem reduzir a participação popular à democracia representativa, como deu a entender Mendonça Filho em outra declaração, desta vez à Agência Brasil. Quem afirma que a abertura de ulteriores espaços de participação possibilita uma pretensa influência antidemocrática de ONGs partidarizadas parece ignorar o peso do poder econômico nas campanhas eleitorais. Não é por acaso que está tramitando no Senado um projeto de lei que visa a proibir o financiamento privado das candidaturas.
A PNPS não traz grandes inovações. Mas dá passos importantes, embora pequenos, no sentido de ampliar a gama de mecanismos institucionais que permitam a qualquer cidadão, como eu e você, influenciar os rumos da administração pública para além do momento da eleição. Na Europa e nos Estados Unidos já existem mecanismos muito mais sofisticados nesse sentido ("Em nome da confiança perdida"). E não nos esqueçamos das frutuosíssimas experiências de Orçamento Participativo, que nasceram no Brasil ("O Brasil continua em nossas mãos") e vêm sendo replicadas em diversas cidades daqui e do exterior. Isso sem contar as fantásticas possibilidades abertas pela tecnologia com vistas a criar canais efetivos de participação ("e-Cid@d@ni@"), como o aplicativo criado pela rede Meu Rio, cujos fundadores são os entrevistados da edição de junho da revista Cidade Nova.