Contra a cultura do linchamento

Um dia depois da morte de Fabiane Maria de Jesus, vítima de linchamento no Guarujá-SP, uma jovem universitária impediu que novas cenas de barbárie tivessem o mesmo trágico desfecho. Sozinha, Mikhaila Copello, 22 anos, evitou que moradores da Freguesia, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, matassem um jovem que acabara de roubar um celular, de acordo com informações do jornal O Globo.

Em sua página no Facebook, a própria Mikhaila relatou que, enquanto tentava separar a briga, “uma multidão se reunia aos gritos de ‘mata! mata!’” e lhe dizia frases como “sorte sua que você é mulher, se não apanhava também”, “se fosse com você, você ia deixar que ele apanhasse”, “você não deve ser moradora da Freguesia”, “defensora de bandidos”.

Mikhaila, que já foi assaltada diversas vezes, resistiu até o fim na defesa do assaltante, não porque, como explicou em seu relato, concordasse com ele, mas porque estava convicta de que uma sociedade não pode combater um crime recorrendo a outro. “Vocês não são Deus, e não podem decidir a morte de um ser humano”, gritou aos linchadores, enquanto esperava a polícia chegar.

A atitude de Mikhaila soa como uma resposta ao importante questionamento levantado pela jornalista e escritora Eliane Brum, em brilhante reflexão (publicada pelo El País) sobre o linchamento de Fabiane. Foi grande a comoção nacional quando divulgou-se que a dona de casa era inocente e que fora brutalmente assassinada “por engano”, confundida com uma sequestradora de crianças.

“E se ela fosse culpada? E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? […] É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?”, questiona a jornalista. E conclui: “chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia”.

Mikhaila assumiu sozinha o risco de defender a vida, a dignidade, a legalidade. E sofreu as consequências disso. Embora não tenha apanhado “por ser mulher”, foi verbalmente violentada do início ao fim da confusão. E não apenas pelos linchadores. Segundo seu relato, “a primeira frase do policial, ao chegar, foi dizer: ‘esse devia ter apanhado mais; gosta de bandido, então leva pra casa’, recebendo aplausos da maioria que estava ali”.

Não é incomum lermos e ouvirmos afirmações como essas nas redes sociais e no nosso cotidiano. São tão chocantes quanto os linchamentos em si. Vindas de um homem fardado, são absolutamente inadmissíveis. A polícia e as forças armadas são o braço do Estado responsável por fazer valer o monopólio do uso legítimo da força, um dos fundamentos do contrato social moderno. Aqueles que “fazem justiça” com as próprias mãos assumem, portanto, uma função que não é sua, além de, claro, agirem ilegalmente.

Na inadequada fala do policial, um representante do Estado no exercício de suas funções, revela-se também a descrença do cidadão comum, insatisfeito com a ineficiência do Governo em cumprir a sua parte do contrato, que consiste em garantir a segurança e salvaguardar direitos mínimos, como a liberdade e a igualdade, mais ou menos enfatizados segundo as diferentes correntes políticas. Mas a deficiência de uma parte não pode ser usada como justificativa para os excessos da outra. A não-violência – física ou verbal – é  condição mínima para o transcurso de uma vida política verdadeiramente democrática.

E se quisermos mais que o mínimo, convém que, como Mikhaila, façamos a nossa parte. Inocentes ou culpadas, as vítimas de linchamentos têm nome, sobrenome, história, família, sofrimentos, anseios. São outros “eu”, outros “nós”. Reconhecer e assumir pessoalmente essa realidade, sem buscar outros culpados ou recorrer a subterfúgios, é condição sine qua non para fazermos da política um instrumento de construção do bem comum.

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linchamento, justiça, sociedade civil, Estado, ética



Sobre

Pensar e agir politicamente é como arrumar a casa. Podemos até não gostar do empenho requerido pela árdua tarefa, mas, se quisermos habitar um ambiente de paz e dignidade, é necessário cumpri-la. Cada ato nosso tem consequências para aqueles que compartilham conosco um bairro, uma cidade, um estado, um país. Para além das necessárias distinções entre as esferas pública e privada, a construção do bem comum só é possível por meio de interações saudáveis entre o Estado e seus diferentes poderes, a economia e a sociedade civil. A missão de desatar os nós desse complexo e fascinante emaranhado de relações cabe a todos nós.

Autores

Daniel Fassa

Formado em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP), Daniel Fassa é pós-graduado em Filosofia Política pelo Instituto Universitário Sophia (Florença, Itália), mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e doutorando na mesma área pela PUC-Rio. É repórter da revista Cidade Nova e editor deste Portal.