Ninguém é dono da Promessa

"Mais tarde entendi – e ainda não deixei de o entender e o aprender – que somente no pleno ser-neste-mundo da vida se aprende a acreditar.” (Dietrich Bonhoeffer, Resistência e Submissão)

A primeira vez que a palavra “mercado” aparece no Génesis (23,16) é a propósito da compra e venda de uma sepultura, sinal da Terra prometida. O primeiro pedaço de terra de Canaã a tornar-se propriedade de Abraão é um terreno que ele compra para sepultar sua mulher Sara. Deus tinha-lhe prometido a «propriedade» (ahuzzà: 17,8) da terra prometida, mas a única terra que consegue em «propriedade» (ahuzzà: 23,4) é uma sepultura.

Sucede muitas vezes a quem segue uma voz e sinceramente se põe a caminho que a terra prometida a veja ao longe, a habite, ame mas não se torne seu proprietário. Sara morre na terra de Canaã; mas morre ainda como estrangeira e hóspede. «Estrangeiro (ger) e peregrino (tosab) sou entre vós» (23,4), dirá Abraão aos hititas no início da negociação do terreno para sepultar a sua mulher –...

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Verdadeira é a fidelidade ao Inesperado

"Depois de preparar a lenha, tendo atado Isaac sobre a pira, Abraão prendeu-lhe os braços, arregaçou as mangas, forçou os joelhos sobre ele. Do seu sublime trono, Deus viu como os dois corações se tornavam um só; viu as lágrimas de Abraão que caiam sobre Isaac e as de Isaac caindo sobre o altar, inundado pelo pranto de ambos.” (Louis Ginzberg, As lendas dos hebreus, Vol. II)

Todo o filho traz consigo um mistério de gratuidade. Também Isaac, mesmo se de modo único e extraordinário: «... a tua mulher Sara vai ter um filho teu» (17,19). Abraão «sorriu, pensando no seu íntimo …"Será que Sara vai ter mesmo um filho aos noventa anos?"» (17,17).

Não conseguia acreditar numa promessa que violava as leis da natureza (leis que aquela mesma Voz tinha dado ao mundo e à vida). Também Sara sorriu junto dos carvalhos de Mambré: «Como é que eu vou ainda sentir essa alegria, se eu e o meu marido estamos velhos e cansados?» (18,12). E também Elohim sorrirá, ao dar o nome do filho: «Isaac» (17,19); -...

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Agar e as suas muitas irmãs

"A primeira mulher que usou faixa à cintura foi a mãe de Ismael, para esconder a gravidez diante de Sarai” (Livro dos adágios sobre os profetas).

O primeiro anjo da Bíblia foi enviado para consolar uma escrava-mãe – Agar – que a sua patroa tinha posto fora de casa. Perante a sua esterilidade e a crise da Promessa, Sarai procura uma solução por sua conta: “disse a Abrão: ‘YHWH não me deu possibilidade de ter filhos. Mas talvez a minha escrava, te possa dar algum filho por mim’” (16,2). E assim Sarai “deu a sua escrava Agar a Abrão como segunda mulher” (16,3).

Perto da velhice, Sarai já não consegue acreditar que o chamamento é verdadeiro e encontra uma escapatória prevista na lei (figurava também no código babilónico de Hamurábi), mas diferente da promessa. No entanto, Agar “ao saber que estava grávida, começou a olhar com desprezo a sua senhora” (16,4). Alguma coisa não correu bem nesta solução que parecia simples: o menino que nasceu não será o ‘filho de Sarai’; continuará a ser o...

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Abraão não viu, acreditou, tornou-se justo. E foi pai

Houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos (Søren Kierkegaard, Temor e tremor).

Depois de Babel – a cidade fortificada na qual a humanidade, após o dilúvio, tinha procurado uma salvação errada, sem diversidade e fecunda dispersão pela terra – a aliança e a salvação continuam com Abrão, que deixa a casa de seu Pai e se põe a caminho, confiando numa voz que o chama.

Fé e confiança, porque toda a fé é confiança numa promessa. Noé tinha-nos salvo construindo uma arca, dentro da qual permaneceu juntamente com a sua família e com os animais, aguardando que as águas se retirassem. Abrão responde ao chamamento da mesma voz, pondo-se a caminho em direção a uma terra prometida: “Deixa a tua terra, os teus parentes e a casa do teu pai, e vai para a terra que eu te vou mostrar” (12,1). No início da sua história não lhe é pedido que construa uma arca ou que liberte o seu povo da escravidão, como acontecerá com Moisés. Para responder,...

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Fora da Torre dos impérios: dispersos e salvos

Muitos, muitos anos foram dedicados à construção da torre; ficou tão alta que para subir até ao cimo demorava-se um ano. Aos olhos dos construtores um tijolo tornou-se então mais precioso que um ser humano; se um homem caía da torre abaixo e morria ninguém se preocupava, mas se caísse um tijolo todos choravam porque para o substituir era preciso um ano inteiro. Estavam tão impacientes por terminar a obra que nem sequer permitiam às mulheres que fabricavam os tijolos que interrompessem o trabalho quando chegavam as dores de parto: davam à luz forjando tijolos, punham o menino num pano amarrado ao corpo e depois continuavam a forjar tijolos” (L. Ginzberg, As lendas dos hebreus).

Depois da Arca os homens construíram Babel, uma cidade fortificada que no centro tinha uma alta torre. O livro do Génesis (6,15) indica as dimensões da arca de Noé (132 metros de comprimento, 22 de largura, 13 de altura); mas para Babel diz apenas que o cimo da torre deveria chegar ao céu (11, 4). Partindo...

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O mal não triunfa quando existe a arca do justo

Refugiaram-se na arca, também, duas personagens muito especiais. Entre os que pediram asilo a Noé estava o Engano; foi-lhe recusado porque não tinha companheira: é que na arca só entravam animais aos pares. Então ele pôs-se à procura de uma consorte e encontrou a Desventura, a qual se uniu a ele com a condição de se apropriar daquilo que ele viesse a ganhar. E assim os dois foram admitidos na arca. Quando saíram, o Engano deu-se conta de que tudo quanto conseguia juntar logo desaparecia, e foi pedir explicação à sua companheira. Mas ela retorquiu: “não tínhamos nós combinado que tudo o que tu ganhasses seria meu?”. Assim o Engano ficou de mãos vazias. (Midrash aos Salmos, in As lendas dos Hebreus).

A primeira grande obra, o primeiro feito, de que nos fala o Génesis não é a Torre de Babel; é uma grande arca de salvação e de aliança, construída por um «homem justo» (6,9). As raízes da dignidade e do valor civil e ético de toda a técnica, economia e construção humana têm fundamento na...

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Sobre

A gratuidade entendida como dom é uma dimensão constitutiva da vida e do ser humano, também do "homo economicus". Virtudes como gratuidade, liberdade e respeito pela pessoa encontram-se nas origens da economia (séculos 8 e 9). Hoje, reintroduzir a gratuidade na economia significa inverter a lógica do lucro para recolocar no centro os mais pobres, a pessoa e suas motivações, sua dignidade, ideais, sentimentos. Neste blog, Luigino Bruni faz uma leitura da economia atual, à luz dessas reflexões. Na primeira série de textos deste ano, intitulada "A árvore da vida", o autor busca explorar as reflexões econômicas e civis suscitadas pelo patrimônio cultural judaico-cristão.

Autores

Luigino Bruni

Professor de Economia Política da Universidade Lumsa de Roma e do Instituto Universitário Sophia. Seus principais temas de pesquisa são reciprocidade, felicidade na economia, bens relacionais, Economia de Comunhão, Economia Civil e Economia Social.