"Depois de preparar a lenha, tendo atado Isaac sobre a pira, Abraão prendeu-lhe os braços, arregaçou as mangas, forçou os joelhos sobre ele. Do seu sublime trono, Deus viu como os dois corações se tornavam um só; viu as lágrimas de Abraão que caiam sobre Isaac e as de Isaac caindo sobre o altar, inundado pelo pranto de ambos.” (Louis Ginzberg, As lendas dos hebreus, Vol. II)
Todo o filho traz consigo um mistério de gratuidade. Também Isaac, mesmo se de modo único e extraordinário: «... a tua mulher Sara vai ter um filho teu» (17,19). Abraão «sorriu, pensando no seu íntimo …"Será que Sara vai ter mesmo um filho aos noventa anos?"» (17,17).
Não conseguia acreditar numa promessa que violava as leis da natureza (leis que aquela mesma Voz tinha dado ao mundo e à vida). Também Sara sorriu junto dos carvalhos de Mambré: «Como é que eu vou ainda sentir essa alegria, se eu e o meu marido estamos velhos e cansados?» (18,12). E também Elohim sorrirá, ao dar o nome do filho: «Isaac» (17,19); - Jishaq – que significa «(Deus) sorrirá».
Abraão e Sara sabiam que Isaac era inteiramente e somente dom daquela primeira Voz. Tudo o resto vão descobrindo, enquanto o vivem. Nós, leitores e re-leitores destes textos, é que sabemos da “prova” do Monte Moriá, do anjo e do carneiro. Eles não: Abraão, Isaac, os criados, Sara, não sabiam o que lhes iria acontecer na cena seguinte à que estavam vivendo. Se não levarmos a sério a real humanidade destas longínquas narrações e dos seus protagonistas, acabaremos inevitavelmente por considerá-las belas e edificantes fábulas ou narrativas de sabor moralista, o que lhes retira todo o vigor antropológico, social e espiritual. Levá-las a sério significa então seguir Abraão, repetir as experiências que ele fez, "ignorantes" como ele; oferecer como ele um filho e como ele reencontrá-lo. Só uma leitura "incarnada" da Bíblia é capaz de vencer as consolações enganadoras e as ideologias. Assim nos poremos a caminho, confiantes, seguindo a voz que nos aponta a terra prometida, não sabendo se e quando chegaremos lá; temos finalmente um filho, mas vimos depois a descobrir que é preciso abandoná-lo no deserto; chega o dom de um outro filho e de novo temos que o perder; acompanhamos Caim até ao campo e lá somos mortos por um irmão; levamos uma cruz até ao Gólgota, somos crucificados, e nem força temos para ressuscitar.
«"Abraão! Abraão!". Este respondeu: "Aqui estou". Deus continuou: "Leva contigo o teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, vai à região de Moriá, e oferece-o lá em sacrifício, sobre um dos montes que eu te indicar”» (22,1-2). No Génesis Abraão não diz uma palavra. Sabemos apenas que "partiu bem cedo" (22,3), como cedo tinha partido para deixar Ismael e Agar no deserto (21,14). Como no longínquo dia do primeiro chamamento em Ur dos Caldeus, Abraão respondeu de novo partindo, caminhando atrás da voz. Abraão pôs-se a caminho para o monte Moriá com a mesma fé-confiança com que partira em direção à terra prometida. Fiéis à voz e a si mesmos são os que respondem pondo-se a caminho nas madrugadas e noites da vida. A fé-fidelidade-confiança está em acreditar que a voz que nos prometeu felicidade pode ser a mesma que pede o filho que te tinha dado.
Velho, Abraão parte de novo, reconhecendo naquelas palavras a mesma voz do início. Se hoje quisermos que nos seja restituído um filho, se quisermos continuar uma história de salvação, teremos que reviver aquela narrativa caminhando com e como Abraão. Uma vez na vida, pelo menos.
Júlio é um empresário que acreditou na empresa familiar que os pais lhe deixaram; Também ele fez a viagem salvífica de Abraão. Quando finalmente a empresa começava a dar frutos e se previam dias serenos, surge a exigência de pagamento de luvas para continuar o negócio com o cliente mais importante. Ele não aceitou, e regressando a casa daquela entrevista indecente apenas sabe que escutou a voz que dentro de si dizia: «Mais vale fechar a loja do que ser corrupto e injusto». Nada mais sabe: e é já muito; é suficiente para continuar bem a subida da sua vida. Mais do que isso não sabe. Não há anjos que venham visitá-lo, não sabe que está vivendo "apenas" uma provação.
Joana, dona de um bar no centro da cidade, tinha-se desfeito das máquinas de jogos, pensando nos pobres e nos seus filhos. Com isso perdeu dois mil euros por mês. Percorre também ela a subida muda de Abraão: agora que com grande esforço o bar começa a dar alguma coisa, eis que se apresenta alguém a pedir o ‘pizzo’ – uma taxa cobrada pela máfia. Joana negou porque uma voz lhe diz: «Mais vale incendiarem a loja do que perder a alma». Escuta e conhece apenas estas poucas palavras interiores, só quer saber desta contabilidade moral.
Também amiga de Abraão é a Ana, uma jovem mãe; tivera o dom de recuperar a saúde no final de um longo e extenuante tratamento; numa consulta de controle verifica-se uma recaída: não se zanga com a vida, acolhe-a com docilidade e afinco; regressa a casa sem saber o que irá acontecer no cimo do monte que a espera. Nestes autênticas aventuras da alma e do espírito, o anjo chega – se é que chega – quando já tudo se fez sem saber que teria chegado. Estes anjos não anunciam a sua chegada.
A história de Abraão mostra-nos que as coisas impossíveis e incríveis podem – não têm que – acontecer, se conseguirmos chegar até à última palavra do discurso da nossa vida. Depois, só depois, se descobre, de vez em quando, pelo menos uma vez, que aquela que parecia ser a última palavra era afinal a penúltima. Mas antes de a pronunciarmos não podíamos conhecê-la, porque era a palavra doada. O valor ético e espiritual dos que caminham com e como Abraão está em chegar ao cimo do monte com o filho, a lenha e o fogo, preparar o altar, e depois preparar-se para "morrer" com o filho nesse mesmo altar.
Mas Abraão é companheiro e aliado, também, de quantos o anjo não visitou: o menino não resistiu, a empresa faliu, o bar foi incendiado, a doença acabou por vencer. Abraão ama-nos com a sua fé forte e dócil no trecho de estrada que vai desde a tenda de Sara ao instante imediatamente antes de ouvir a voz do anjo que segura o punhal. A voz do anjo nada acrescenta ao valor da fé de Abraão, embora nos revele muito da lógica e da natureza de Elohim. Se Abraão tivesse sabido que Isaac não morreria antes do anjo falar, a sua experiência teria sido uma "ficção"; o filho de novo doado não teria sido um prémio para a sua fé; teria sido, quando muito, um mero incentivo para se pôr a caminho mais expedito de manhã cedo.
Os que na vida tiveram, pelo menos uma vez, o dom de "morrer" e "ressuscitar", aprenderam que a ressurreição chega só quando se soube morrer. Enquanto duram os nossos invernos não sabemos se e quando as primaveras irão chegar. Somos como os povos primitivos que no final de cada dia não sabiam se o sol iria renascer depois da noite. Mesmo após mil ressurreições, nossas e dos outros, quando de novo nos deparamos com um monte e uma subida, uma vez mais nos pomos a caminho "ignorantes" como da primeira vez, sabendo apenas que é preciso caminhar. Nem sequer Deus – pelo menos o Deus da Bíblia – podia saber se Abraão iria chegar até ao fim da subida e teria preparado o altar: descobriu-o – admirando-se e talvez comovendo-se – apenas quando Abraão segurou o punhal. É este assombro que torna cada instante da vida irrepetível e único; que dá enorme valor ao tempo, à história, à nossa liberdade e responsabilidade.
Não foi sobre a lógica de Abraão que construímos a Europa, o Ocidente, a modernidade, o capitalismo. A predominância da técnica, o utilitarismo económico, as análises de custos-benefício, são filhos de Ulisses, dos gregos e depois dos modernos; não de Abraão. Mas se o mundo não acaba, se boas empresas e famílias continuam a florescer, é também porque Abraão está vivo em muitos e talvez um seu eco resista em todos. Sentir-nos-íamos mais amados pela vida, menos sós nos montes Moriá da existência, se tivéssemos mais consciência de ser filhos de Abraão cada vez que, custe o que custar, nos mantemos fiéis até ao fim a uma voz, a uma promessa, a um pacto, à nossa consciência, à parte melhor de nós mesmos. Contemos então uns com os outros a história do monte Moriá, de Elohim, de Isaac, de Sara, do altar, do anjo, do carneiro. Mas, sobretudo, não deixemos nunca de nos contar a história de Abraão.
Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 20/04/2014. Tradução: António Bacelar.