Sempre houve impérios e ainda hoje os há. Mas agora estamos a deixar-nos adormecer por eles e cada vez mais se torna difícil reconhecê-los. E não os reconhecendo, não se lhes dá o seu nome verdadeiro, não se sente a opressão, não se inicia qualquer caminho de libertação. Fica-se apenas com a ‘soberania’ dos consumidores, cada vez mais infelizes e sós nos próprios sofás.
A leitura e a meditação do livro do Êxodo é um grande exercício espiritual e ético, porventura o maior, para quem deseja tomar consciência dos ‘faraós’ opressores, sentir de novo dentro de si o desejo de liberdade, ouvir o grito de opressão dos pobres, tentar libertar pelo menos alguns deles. E para quem deseja imitar as parteiras do Egito, que amam todas as crianças.
Há uma continuidade direta entre o Génesis e o Êxodo: “José e os seus irmãos e todos os daquela geração morreram, mas os israelitas tiveram filhos e cresceram muito, tendo-se tornado tão numerosos e fortes que enchiam todo o Egito. Subiu então ao trono do Egito um novo rei que não sabia nada a respeito de José” (1,5-7). O crescimento demográfico dos hebreus (1,10) e o receio de que pudesse nascer alguém que o destronasse (1,22), provocam no Faraó um sentimento de grave ameaça. Endurece então a condição dos hebreus, isto é uma mescla heterogénea de povos nómadas estrangeiros que no Egito trabalhavam como escravos, entre os quais vieram a encontrar-se também as tribos de Israel.
E então “os egípcios começaram a ter horror dos israelitas e escravizaram-nos cruelmente, tornando-lhes a vida muito amargurada com trabalhos pesados, no barro e nos tijolos e em toda a espécie de trabalhos de campo.” (1,14). Mas o faraó não se limitou a impor trabalhos forçados aos homens. Tentou a solução mais drástica; com ela se abre uma das páginas mais bonitas da escritura: “o rei chamou as parteiras hebreias, cujos nomes eram Chifra e Pua, e disse-lhes: «Quando ajudarem as hebreias a dar à luz, prestem atenção. Se for menino, matem-no; se for menina, deixem-na viver»” (1,15-16).
Uma profissão ou ofício não é a que emana de um qualquer dos muitos faraós, dominado por ambição de poder e omnipotência, antigas ou novas. As suas leis devem ser respeitadas apenas e só quando servem a lei da vida.
A profissão de parteira era muito estimada e desenvolvida no Egito. Havia em Sais uma escola famosa em toda a Antiguidade; Neferica-Ra e mais tarde Peseshet foram duas parteiras recordadas como as primeiras mulheres médicas da história. As parteiras foram sempre consideradas pelo povo um ‘bem comum’, mulheres que com a sua atividade se associavam ao trabalho de parto das mães, lutando sempre do lado da vida; toda a comunidade, que das suas boas e experientes mãos recebe os filhos, ama-as (a “Senhora Germana”, a última parteira da terra em que nasci, permanece ainda uma estrela luminosa).
Na Antiguidade era uma atividade exclusivamente feminina; geria o final da gestação, o momento sacro em que as mulheres nos geram e regeneram o mundo. A cultura bíblica atribui ao parto lugar central. Raquel, uma das mais belas e importantes figuras do Génesis, morre ao dar à luz. É então, no relato do último parto de Raquel, que pela primeira vez surge na Bíblia a palavra parteira: “A parteira disse-lhe: «Não tenhas medo! Tens aqui outro rapaz!»(Gen 35,17).
Aquela primeira parteira segredou palavras de bondade e esperança (às mães no momento do parto não se fala: acariciam-se, fala-se-lhes com as mãos, quando muito, sussurra-se). Mesmo assim, ela não conseguiu evitar a morte de Raquel, depois de Benomi-Benjamim nascer. Volta a surgir a parteira para o parto de Tamar, quando põe uma ‘fita vermelha’ no pulso do primeiro dos gémeos (38,28). E, por fim, as parteiras do Egito: será a última vez que aparecem já que depois das palavras infinitas de Chifra e Pua, nada mais havia a dizer.
Aquele povo nômade – que vivia em tendas itinerantes onde os partos não eram nada fáceis – na origem da sua grande história de libertação quis colocar duas parteiras do Egito. Pouco sabemos de Chifra (‘a bela’) e de Pua (‘esplendor’, ‘luz’). É quase certo tratar-se de egípcias, provavelmente responsáveis das parteiras dos hebreus ou mesmo de todo o Egito.
Conhecemos os seus nomes e, o que é mais importante, sabemos que foram as primeiras objetoras de consciência: “As parteiras obedientes a Deus não cumpriram as ordens do rei do Egito, e deixaram viver os meninos” (1,17). A primeira arte da terra é a destas parteiras: ‘deixar viver os meninos’, os próprios e os dos outros: todos os meninos. Quando esta primeira arte se eclipsa, a vida deixa de ter o primeiro lugar e as civilizações ficam confusas, adoecem, entram em decadência.
Neste ‘não’ ao faraó e ‘sim’ à vida, está guardada também, portanto, uma grande palavra válida para qualquer tipo de trabalho: a lei mais profunda e verdadeira de uma profissão ou ofício não é a que emana de um qualquer dos muitos faraós, dominado por ambição de poder e omnipotência, antigas ou novas. As suas leis devem ser respeitadas apenas e só quando servem a lei da vida. Quando alguém se esquece que a ‘lei dos faraós’ é sempre lei segunda – nunca a primeira – fica transformado em súdito de impérios; e então não iniciará nenhuma libertação, sua e dos outros. Chifra e Pua dizem-nos que ‘não se matam meninos’; não se matam os meninos dos egípcios nem os dos hebreus. Não se matam meninos no Egito nem em qualquer outro lugar. Ontem, hoje, sempre. Se é que pretendemos permanecer humanos. E sempre que assim não fizermos, não ‘obedecemos a Deus’, não obedecemos à vida e renegamos a herança das parteiras do Egito.
Em Chifra e Pua, mulheres, trabalhadoras, seres humanos que se colocam do lado da vida, ecoa o mito grego de Antígona (que desobedece ao rei para obedecer à lei mais profunda da vida, dando sepultura a seu irmão morto em batalha). Nelas revivem as mulheres do Génesis, as outras mulheres da Bíblia. Nelas é anunciada Maria; e todas as mulheres que até hoje continuam a dar-nos a vida. Nelas revivem os carismas e o ‘perfil mariano’ da humanidade.
O início do livro do Êxodo desenrola-se todo sob o signo de mulheres que salvam a vida. A mãe de Moisés desobedeceu à nova ordem do faraó – “deitem ao Nilo todos os meninos hebreus recém-nascidos” (1,22) – e salvou o menino. “...escondeu-o durante três meses. Mas não conseguindo escondê-lo por mais tempo”, construiu un cesto de junco betumado com pez, colocou o menino dentro e foi pô-lo nas águas do Nilo (2,2-3). Outra mulher, a filha do faraó, encontrou o cesto no rio; quando, abrindo o cesto, viu lá dentro “um dos meninos dos hebreus” “teve pena dele” (2,5-7).
Até nos piores trabalhos nós podemos salvar-nos. Trabalhar é parte da condição humana.
Toda a cena do achamento do cesto na margem do grande rio passa-se à vista da irmã de Moisés: “a irmã do menino ficou a certa distância para ver o que lhe acontecia” (2,4). É estupendo este olhar de mulher-menina que acompanha, da margem, a cesta que se desloca no rio; um olhar bom de amor inocente como terá sido o de Eloim seguindo a arca-cesto de Noé, o justo; não é por acaso que a palavra hebraica tevà é usada tanto para o cesto de Moisés como para a arca de Noé. A irmã de Moisés falou com a filha do faraó, oferecendo-se para achar uma ama hebreia. A filha do faraó concordou e disse à mulher que era, afinal, a mãe de Moisés: “Leva este menino e amamenta-o por mim, que eu te pagarei um salário” (2,9).
Uma vez mais o trabalho de mulher que salva, o trabalho mais íntimo (o leite permutado entre mulheres para a vida), associado a outra palavra chave: salário. Num tempo atormentado tanto para o trabalho como para o salário, quando as leis de faraó não querem que nasçam meninos, ou pretendem transformá-los em produto de mercado, este início do livro do Êxodo deverá falar-nos e interpelar-nos fortemente.
O Faraó queria utilizar o trabalho para eliminar os filhos de Israel: o trabalho forçado nos tijolos e o trabalho das parteiras. Mas nem um nem outro se tornou aliado da morte. As parteiras, por vocação, escolheram a vida; mas nem sequer os trabalhos forçados levaram a melhor, porque “quanto mais os egípcios os oprimiam, mais os israelitas se multiplicavam e mais se expandiam” (1,12). Apesar do faraó, o trabalho continua a ser aliado da vida e não se deixa usar facilmente para fins de morte. Os faraós são sempre tentados a manipular o nosso trabalho, mas até nos piores trabalhos nós podemos salvar-nos. Trabalhar é parte da condição humana. Temos, pois, a capacidade de o tornar amigo, apesar de poderosos e impérios, e podemos converter o ‘trabalho-lobo’ em ‘irmão trabalho’. Mais difícil, hoje em dia, é salvar-se do ‘não-trabalho forçado’.
O início do livro do Êxodo mostra-nos uma maravilhosa aliança entre mulheres, de várias categorias sociais, cooperando para a vida; maridos e pais são opressores e oprimidos. Estas alianças cruzadas entre mulheres salvaram muitas vidas durante guerras e ditaduras de homens, construindo com as próprias mãos ‘cestas’ de salvação. Alianças que continuam a ver-se nas nossas cidades e que permitem aos nossos filhos viver e tonar-se grandes. É preciso salvar os meninos: é a lei das parteiras, das mulheres; a primeira lei da terra.
“Deus recompensou as parteiras … . E como as parteiras obedeceram a Deus, ele concedeu-lhes famílias numerosas” (1,20-21). São as ‘numerosas famílias’ das parteiras do mundo, pessoas que amam e protegem a vida, mães das meninas e meninos de todos.
Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 10/08/2014, e no site da Economia de Comunhão. Tradução: António Bacelar.