Os muitos dias que já não nos saciam

Uma coisa só o magoava: começava a ficar velho e tinha que deixar a terra lá onde ela estava. É uma injustiça de Deus: depois de ter gasto a vida a comprar os seus bens, quando se consegue possuí-los – e bem se gostaria de ter ainda mais – é preciso deixá-los! E assim, quando lhe disseram que era tempo de deixar as suas coisas e pensar na alma, saiu para o pátio como louco, cambaleando; pôs-se a matar à bengalada os seus patos e os seus perus e gritava: - "Coisas minhas, venham comigo!" (Giovanni Verga, La roba [As coisas]).

O progresso não é um conjunto de vetores orientados todos na mesma direção. Em muitas dimensões da vida, a modernidade trouxe grandes melhoramentos e desenvolvimento; não foi assim com a arte de envelhecer e de morrer que está a passar por rápida e forte marcha atrás. A fase final do ‘ciclo de Jacob/Jacó’ está tingida pela dor e pela morte, principalmente, de mulheres.

Depois da triste história de Dina, surge a morte de Débora, “ama de Rebeca” (35,8), sepultada...

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Porque não acaba o mundo

"Um deles, quando viu que estava curado, voltou, glorificando a Deus em voz alta. Ajoelhou-se aos pés de Jesus, curvando-se até ao chão em agradecimento. E este era samaritano. Então Jesus perguntou: «Não eram dez os que foram curados? Onde estão os outros nove?". (Evangelho de Lucas, 17,15-17)

Perante a história de Dina há só que ficar em silêncio: “Dina, filha de Jacob/Jacó e Lia, saiu um dia do acampamento para ir visitar as mulheres daquela terra. Siquém, descendente de Hamor, o hiveu, chefe daquela terra, viu-a e levou-a consigo para dormir com ela, violentando-a” (34,1).

Ao reviver os tristes acontecimentos deste capítulo do Gênesis dá vontade de passar à frente o capítulo inteiro e procurar outras histórias. Mas iremos atravessar também estas desoladoras páginas da condição humana. Também elas são frequentes e ordinárias na história; e, nas entrelinhas, podem esconder mensagens de vida. Grande parte do trabalho para descobrir algumas verdades da condição humana – qualquer que...

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O perdão é luta abençoada

"Naquele dia a alvorada foi mais breve que o normal: o sol surgiu duas horas antes do tempo … E aquele sol prematuramente nascido apresentava uma força admirável: brilhou com o mesmo esplendor que tivera nos seis dias da criação e que voltará a exibir no fim dos tempos".

Na Bíblia – diferentemente do que acontece na civilização do consumo – os nomes de pessoas (e lugares) são uma coisa séria. São sempre escolhidos para indicar, simbolicamente, uma vocação ou um destino. E quando, num evento ou encontro extraordinário, o primeiro nome é substituído, o nome passa a ser também um chamamento para uma missão especial e universal. É assim com Sarai e Abrão: depois da Aliança tornam-se Sara e Abraão; e, após a sua luta noturna, Jacob/Jacó passará a ser Israel.

Reconciliado já com Labão, Jacob/Jacó sabe que terá o encontro mais difícil: o que o espera com Esaú, o irmão que tinha enganado. Mas ele não sabia que antes de poder reencontrar Esaú, um outro encontro extraordinário o esperava na...

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O caminho: dizer e nutrir aliança

"Vendo Labão que Jacob/Jacó não tinha bagagens, deduziu que deveria trazer na sacola grande quantidade de dinheiro; e abraçou-o na cintura para verificar… Foi o próprio Jacob/Jacó que lhe disse: ‘Enganas-te se pensas que venho cheio de dinheiro. Nada mais trago que palavras". 

Antigamente o homem acessava com maior facilidade ao mistério da vida. Homens, mulheres e seres “visíveis” eram apenas uma parte pequena dos falantes, no mundo que ele habitava. A terra estava cheia de fortes mensagens e símbolos que ele interpretava com clareza. Muitas dessas “palavras” eram vivas e verdadeiras; nós esquecemo-nos delas, como acontece quando, crescidos, usamos uma nova maneira de falar, deixando de usar a que aprendemos na infância. E isso torna-nos mais pobres.

Chegado à terra do tio LabãoJacob/Jacó "um dia encontrou no campo um poço" (Gén. 29,2). O poço é um símbolo grande nas culturas nômades. Era e é ainda sinal de vida, de regeneração da natureza, salvação de rebanhos e pessoas, lugar de...

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A porta do céu é uma voz

“Samuel disse a Saúl: "Porque é que tu me perturbaste e me fizeste sair de onde eu estava?". Respondeu-lhe Saúl: "Estou muito preocupado … Deus afastou-se de mim e não me responde, nem pelos profetas, nem pelos sonhos".  
1º livro de Samuel, 28,15

O livro do Génesis não é um tratado de moral nem um manual de ética familiar. É bem mais do que isso. O ciclo de Jacob/Jacó (capítulos 27-37) é uma belíssima pintura a fresco da grandeza e contradições do humano; são usadas todas as cores da vida, todos os possíveis tons dos relacionamentos sociais e familiares: esplendorosos e matinais, em teofanias e bençãos; lúgubres e noturnos em mentiras e enganos.

Enganado, posto à margem do rio da Aliança na companhia dos outros "vencidos", quando Esaú descobre o segundo engano do irmão (o furto da bênção patriarcal) “ficou com muito ódio a Jacob/Jacó… e pensava para consigo mesmo: ‘O meu pai já deve durar pouco tempo; depois de ele morrer, hei de matar o meu irmão.’” (27,41). Vindo a saber das...

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Insubstituível palavra

Não há mãos que me acariciem o rosto, (dura é a missão destas palavras que não conhecem amores) não sei o que seja a doçura dos vossos abandonos: coube-me ser guardião da vossa solidão: sou salvador de horas perdidas (D.M. Turoldo).

Sem o livro de Job/Jó, o Cântico, os Salmos, o Evangelho de Lucas, o livro do Génesis, a arte, a poesia e a literatura seriam bem diversas; seriam certamente menos belas e mais pobres de palavras. Na base da força da Bíblia – incluindo a força poética – está uma radical, incondicional, absoluta fidelidade à palavra, muito difícil de entender para os leitores do nosso tempo, mas decisiva também para nós.

No ciclo de Isaac a natureza e a força da palavra emergem de uma tensão entre o plano "subversivo" de Rebeca e a vontade de Isaac. A Aliança entre JHWH e Abraão continua com dois gémeos apresentados como rivais, em conflito já no ventre da mãe ("dois gémeos lutavam um contra o outro no seu ventre", 25,22). Esaú "tornou-se caçador experimentado, gostava da...

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Sobre

A gratuidade entendida como dom é uma dimensão constitutiva da vida e do ser humano, também do "homo economicus". Virtudes como gratuidade, liberdade e respeito pela pessoa encontram-se nas origens da economia (séculos 8 e 9). Hoje, reintroduzir a gratuidade na economia significa inverter a lógica do lucro para recolocar no centro os mais pobres, a pessoa e suas motivações, sua dignidade, ideais, sentimentos. Neste blog, Luigino Bruni faz uma leitura da economia atual, à luz dessas reflexões. Na primeira série de textos deste ano, intitulada "A árvore da vida", o autor busca explorar as reflexões econômicas e civis suscitadas pelo patrimônio cultural judaico-cristão.

Autores

Luigino Bruni

Professor de Economia Política da Universidade Lumsa de Roma e do Instituto Universitário Sophia. Seus principais temas de pesquisa são reciprocidade, felicidade na economia, bens relacionais, Economia de Comunhão, Economia Civil e Economia Social.