"Vendo Labão que Jacob/Jacó não tinha bagagens, deduziu que deveria trazer na sacola grande quantidade de dinheiro; e abraçou-o na cintura para verificar… Foi o próprio Jacob/Jacó que lhe disse: ‘Enganas-te se pensas que venho cheio de dinheiro. Nada mais trago que palavras".
Antigamente o homem acessava com maior facilidade ao mistério da vida. Homens, mulheres e seres “visíveis” eram apenas uma parte pequena dos falantes, no mundo que ele habitava. A terra estava cheia de fortes mensagens e símbolos que ele interpretava com clareza. Muitas dessas “palavras” eram vivas e verdadeiras; nós esquecemo-nos delas, como acontece quando, crescidos, usamos uma nova maneira de falar, deixando de usar a que aprendemos na infância. E isso torna-nos mais pobres.
Chegado à terra do tio Labão, Jacob/Jacó "um dia encontrou no campo um poço" (Gén. 29,2). O poço é um símbolo grande nas culturas nômades. Era e é ainda sinal de vida, de regeneração da natureza, salvação de rebanhos e pessoas, lugar de relacionamentos, comunidades, oásis, encontros. É junto a poços que a Bíblia situa muitos encontros entre homens e mulheres (os casos de Isaac, Moisés, Jesus com a Samaritana). É difusa e remonta a tempos antiquíssimos a familiaridade entre a mulher e a água (as sereias, as ninfas...). Jacob/Jacó encontra a sua prima Raquel junto de um poço, estava ela com o rebanho de ovelhas ("pois ela era pastora": 29,9); e ficou imediatamente fascinado: "Jacob/Jacó saudou Raquel com um beijo e não pôde conter as lágrimas" (29,11).
Foi durante o longo e complexo período que Jacob/Jacó passou na casa de Labão que pela primeira vez surgiu na Bíblia a palavra “salário”: "Diz-me que salário queres" (29,15). O primeiro salário é uma mulher: "Aceito trabalhar para ti, durante sete anos, para casar com Raquel, a tua filha mais nova" (29, 18). Certamente, neste salário especial existem traços (para nós desagradáveis) de um mundo antigo no qual as filhas eram “mercadoria” (31,14); mas nele está também, escondida como pérola, uma das mais belas definições do amor humano: "Para obter Raquel, Jacob/Jacó trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias" (29,20).
Ao longo destes complexos e cativantes capítulos, Jacob/Jacó, o assalariado, não era um homem livre: estrangeiro, não tinha propriedades; era trabalhador por conta de outrem, numa condição social e jurídica semelhante à de um servo (no mundo pré-moderno apenas a propriedade da terra criava riqueza e status). Mas no final dos sete anos combinados o contrato-salário não funcionou: com um engano (arte bem conhecida de Jacob/Jacó) Labão deu-lhe por mulher não Raquel"bonita e elegante" mas Lia, a filha mais velha, que "tinha os olhos muito ternos" (29,17), e pediu a Jacob/Jacó para continuar ao seu serviço por mais sete anos para ter também Raquel como mulher. Jacob/Jacó ficou, porque Raquel "era a sua preferida" (29,30). Passados outros sete anos, Jacob/Jacó quis regressar a Canaã. Labão tem que liquidar a compensação do seu trabalho: "Diz-me então que salário pretendes, que eu to pagarei" (30,28). Fixam um outro acordo para determinar a parte dos rebanhos que cabe a Jacob/Jacó; é um contrato cheio de truques (30,31-43) que acabará por comprometer a relação entre eles (31,1-2). De modo que também este segundo contrato-salário entre Labão e Jacob/Jacó produziu conflitos e injustiças.
Hoje como ontem, os contratos podem produzir e produzem desigualdades crescentes e conflitos, porque são usados para empobrecer a parte mais frágil. Os fortes e os frágeis existem e como tais permanecem, mesmo quando “livremente” assinam contratos. Também por isso, ao humanismo bíblico não bastam os contratos (ainda que necessários e muitas vezes indispensáveis); são precisos pactos.
É esta, também, a mensagem do epílogo do diálogo-conflito entre Labão e Jacob/Jacó. Labão alcança Jacob/Jacó em fuga; o sobrinho exprime toda a sua frustração por causa das injustiças infligidas pelo tio, que lhe alterou "o salário dez vezes" (31,41). Mas no auge daquele difícil diálogo, Labão diz: “façamos ambos um pacto” (31,44). Depois da Aliança com JHWH e das que celebrara com povos estrangeiros, esta é a primeira aliança entre homens da mesma comunidade, um pacto entre duas pessoas que finalmente descobrem estar ao mesmo nível. O contrato-salário não fora para eles bom instrumento de paz e de justiça: sê-lo-á o pacto. Nos pactos os símbolos são essenciais: "Jacob/Jacó pegou numa pedra e colocou-a ao alto para servir de monumento" (31,45). Tinha erguido a primeira estela em Bétel (28,18) como altar, depois do sonho da “escada” para o céu; ergue agora uma segunda estela por um pacto com um outro homem. Os pactos inter-humanos não merecem estelas menores, pois também elas celebram a Aliança, a vida, o amor; por esta razão, talvez, ao lado da eucaristia, a Igreja católica inseriu entre os sacramentos o matrimónio celebrado pelos esposos.
Mas não ficam por aqui os símbolos deste pacto: "Jacob/Jacó disse aos seus parentes: “Juntem mais pedras”, e eles assim fizeram. Juntaram um monte de pedras e comeram junto daquele monte de pedras". E Labão disse: "Que este monte de pedras e este monumento... sejam testemunhas entre mim e ti". (31,52). Também Isaac tinha comido com Abimeleque (26,30) depois de celebrarem a aliança. Comer juntos depois do pacto era e é muito mais que um “almoço de trabalho” (embora nos almoços de trabalho exista um antigo eco daqueles remotos pactos). Partilhar a refeição é partilhar a vida; é a comunhão que se faz também alimento. A boda de casamento é um elemento importante do pacto porque diz comunitariamente outras importantes palavras de vida. Uma reconciliação ou uma declaração de amor assumem maior força se forem acompanhadas por um jantar, por uma festa de convívio, talvez preparada em conjunto, na sobriedade. Não creio que possam celebrar-se estes bons pactos em clubes privados ou secretos (aí, pelo contrário, celebram-se muitos pactos errados; todos os dias o constatamos). Em muitas culturas, também depois dos funerais era costume comer com os familiares do defunto; o alimento partilhado tornava-se dor partilhada e renovação de um pacto comunitário; os nossos funerais são tristes, mas ainda mais tristes são os tempos depois do funeral: cada vez mais consumidos nas solidões.
A nossa época será recordada por muitas coisas esplêndidas; mas também pela invenção do fast-food e da sanduíche solitária das pausas de almoço. Sabemos bem a grande diferença que existe – em termos de alegria e de qualidade de vida – entre um almoço partilhado com colegas-amigos e outro tomado sem companhia. Quando se come com um bom amigo-colega, para além de calorias, “comemos” bens relacionais que nutrem pelo menos tanto quanto o alimento e tornam melhor o trabalho, a vida e a saúde (basta ver as estatísticas). Sinal da insustentabilidade do nosso modelo económico são as demasiadas sanduíches que se comem sem companhia.
Em atos verdadeiramente importantes, as palavras humanas são essenciais, mas não bastam: queremos ouvir falar a natureza, o céu, os antepassados, os anjos, a terra toda. Quando por detrás de um contrato existem coisas verdadeiramente importantes (uma empresa nova, uma escola, um hospital…), não basta um brinde. Conheci empresários de economia civil e coolaboradores que quando admitiam um novo trabalhador o convidavam para jantar. Durante a refeição apresentavam ao recém-chegado a história da empresa, os seus valores originais; deste modo revivia-se e alargava-se o pacto fundador. Não se pode ser companheiros de viagem sem cum-panis, sem o pão partilhado.
Os contratos que produzem vida boa e resistem ao tempo são precedidos ou seguidos de pactos. Uma empresa nascida apenas de contratos ou se torna também um pacto – muitas vezes depois de passar por uma crise – ou morre. Na sociedade tradicional os pactos estavam implícitos nas comunidades que exprimiam os contratos de empresas e cooperativas; não era por acaso que nasciam de famílias ou de grupos que partilhavam ideais políticos ou espirituais. Também a nossa democracia e instituições nasceram de pactos que brotaram das lágrimas e do sangue de guerras e ditaduras. É por isso que os contratos nascidos desses pactos foram fortes e bons; e ainda hoje nos ajudam a viver.
Mas sobre o que fundamos hoje os novos contratos, bancos, partidos, empresas? Onde estão os pactos, os símbolos, as estelas, os nossos cum-panis? Até quando nos contentaremos de ter como “testemunhas” as hipotecas e os advogados? É esta “carestia de fundamento” a razão mais profunda das tantas crises do nosso tempo. A nossa geração está ainda apoiando os seus pactos sobre um patrimônio ético, espiritual e simbólico construído ao longo de séculos de civilização. Mas ele está se esgotando. Se quisermos começar a regenerá-lo, teremos de novo que fundar simbolicamente os relacionamentos entre nós, reaprendendo a partilhar o pão bom.
Depois daquele pacto e daquela refeição de paz Jacob/Jacó continuou a sua viagem "e foram ao seu encontro uns mensageiros de Deus" (32,2).
Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 18/05/2014, e no site da Economia de Comunhão. Tradução: António Bacelar.