A fraternidade não se compra

“Aceita o meu oferecimento! Guarda-me como refém em lugar do menor… Eu expiarei por todos nós. Aqui, diante de ti, estrangeiro, tomo o tremendo juramento que nós, os irmãos fizemos, tomo-o com as mãos ambas e parto-o em dois sobre os meus joelhos. Ao nosso undécimo irmão, o cordeiro do pai, o primeiro filho da esposa verdadeira, não o devorou nenhuma besta-fera: nós, os irmãos, o vendemos ao mundo” (Thomas Mann, José e seus irmãos) .

Para curar feridas profundas das relações primárias da nossa vida (a fraternidade) é preciso tempo, é vital. Ninguém consegue reconciliar-se verdadeiramente se não permitir que a dor-amor entre até à medula da relação doente, seja absorvida e, lentamente, a cure. São sobretudo necessárias ações que, com a linguagem do comportamento que desejamos, digam com verdade ‘recomeçar’.

A segunda parte do ciclo de José é uma esplêndida lição sobre o processo de reconstrução da fraternidade negada, sobretudo quando há uma vítima inocente que, depois de longo e...

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O segredo do verdadeiro sucesso

A filósofa política Jennifer Nedelsky, canadense, professora da Universidade de Toronto, é uma das vozes mais inovadoras na discussão sobre temas relacionados a cuidados, direitos e relações sociais, e está convencida de que, na nossa época, existe uma grande necessidade que, infelizmente, é deixada muito de lado no cenário da nossa vida democrática: o relacionamento profundo entre trabalho e cuidado e, portanto, entre homens e mulheres, jovens e anciãos, ricos e pobres.

Um tema essencial em um mundo no qual temos cada vez mais idosos que, graças a Deus, vivem sempre mais. Sem uma reviravolta coletiva e séria na cultura dos cuidados em relação à cultura do trabalho, a democracia e a igualdade entre as pessoas serão substancialmente negadas. Conheço-a há alguns anos (e por isso nesta conversa que segue, traduzi o inglês “you” com “você”. Encontrei-a na Itália no Instituto Universitário Sophia de Loppiano (Florença). Fiz algumas perguntas sobre temas que acredito que devem ser...

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Olhos honestos de profeta

"Deus responderá favoravelmente a Faraó. Falas de Deus – indagou Amenhotep –, já o fizeste mais de uma vez. A que Deus te referes? Como és de Zahi e di Amu, presumo que te refiras ao boi arador a que no Oriente dão o nome de Baal, o Senhor, não é verdade? O sorriso de José feneceu-lhe nos lábios. Ele apenas abanou a cabeça. Meus pais, os sonhadores de Deus – disse ele – fizeram o seu pacto com outro Senhor. Então só pode ser Adonai, o noivo – acudiu veloz o soberano, por quem a flauta geme nos algares e que torna a erguer-se”. (Thomas Mann, José e seus irmãos)

Há muitas formas de carestia, muito diversas entre si. O nosso tempo atravessa a maior carestia de sonhos que a história da humanidade conheceu.

Produzida pelo atual capitalismo individualista e solitário, a carestia de sonhos é uma forma muito grave de indigência: a quem falta pão não desaparece a fome, mas quem se priva de sonhos acaba por não notar sequer a sua ausência; cada vez mais sufocados por objetos de consumo,...

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Sem preço nem clamor

"Quando (Nekliudov) acordou na manhã seguinte, o seu primeiro sentimento foi o de ter cometido na véspera uma má ação. Começou a reunir as suas recordações: não havia nenhuma má ação. A sua conduta fora irrepreensível [...] mas tivera maus pensamentos, o que era ainda pior. Podemos arrepender-nos e não repetir uma má ação, mas os maus pensamentos engendram toda a espécie de más ações.” (Leon Tolstoi, Ressurreição ).

A história de José na casa de Potifar, alto funcionário egípcio, é uma grande lição sobre a gramática da lealdade. Mas não é virtude do tempo que vivemos, a lealdade.

Ao longo de séculos empresas e instituições viveram de um patrimônio de lealdade que era produzido pelos valores, pelo esforço e pelo modo de fazer de famílias, igrejas e comunidades; e era alimentado pelas grandes narrativas, da arte e da literatura. Nas últimas décadas deixamos de produzir intencionalmente estes valores e modos de fazer; mas a necessidade de lealdade continua a existir e aumenta. Há alguns...

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A Palavra transforma o mundo

"Prosseguiram viagem até Efrat, onde está sepultada Raquel. José correu para a sepultura da mãe e lançou-se em cima dela, abatido, mais de quanto se possa descrever: ‘Mãe, mãe, tu que me geraste, levanta-te, vá! Volta à vida para ver o teu infeliz filho vendido como escravo e abandonado … Acorda, mãe, vela pelo meu pai que neste dia está comigo com toda a alma e com todo o coração; fica a seu lado e conforta-o’” (Louis Ginzberg, As lendas dos hebreus).

A palavra lucro (bèça) aparece pela primeira vez na Bíblia aquando da venda de um irmão: “Que lucro temos nós em matar o nosso irmão?” (37,26). Depois de terem lançado José na cisterna, os irmãos concordaram com Judá e “venderam-no por vinte moedas de prata” (37, 28) a uma caravana de mercadores.

Era o preço de um escravo ou de um par de sandálias, vinte vezes menos do que Abraão pagou aos Hititas pela sepultura de Sara. Foi assim que José, o irmão mais novo, foi vendido como escravo aos Ismaelitas, descendentes do filho de Abraão e...

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O dom do irmão sonhador

Meu muito amado! [...] Eleito e preferido pelo coração ousado em atenção à única amada, que viveu em ti e com cujos olhos me estás mirando como ela me olhou uma vez junto ao poço, quando surgiu entre as ovelhas de Labão e eu arredei a pedra do poço para ela. Ela deixou que eu a beijasse e os pastores gritaram exultando: ‘Lu, lu, lu!’. Em ti, querido, a conservei quando o Todo Poderoso a afastou do meu lado; ela sobreviveu na tua beleza e que coisa é mais doce do que é duplo e duvidoso?” (Thomas Mann, "José e seus irmãos").

As personagens bíblicas não são máscaras de uma peça de teatro. Não interpretam um papel ou figura (bom-mau, traidor-traído, etc.). São seres humanos, com as mais várias tonalidades e fisionomias que a humanidade apresenta.

Algumas destas personagens receberam um chamamento especial em vista de uma missão e de uma salvação coletiva, mas nunca deixaram de ser inteiramente homens e mulheres. Bondade, pureza, trapaças, furtos, bênçãos, abraços, fraternidade,...

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Sobre

A gratuidade entendida como dom é uma dimensão constitutiva da vida e do ser humano, também do "homo economicus". Virtudes como gratuidade, liberdade e respeito pela pessoa encontram-se nas origens da economia (séculos 8 e 9). Hoje, reintroduzir a gratuidade na economia significa inverter a lógica do lucro para recolocar no centro os mais pobres, a pessoa e suas motivações, sua dignidade, ideais, sentimentos. Neste blog, Luigino Bruni faz uma leitura da economia atual, à luz dessas reflexões. Na primeira série de textos deste ano, intitulada "A árvore da vida", o autor busca explorar as reflexões econômicas e civis suscitadas pelo patrimônio cultural judaico-cristão.

Autores

Luigino Bruni

Professor de Economia Política da Universidade Lumsa de Roma e do Instituto Universitário Sophia. Seus principais temas de pesquisa são reciprocidade, felicidade na economia, bens relacionais, Economia de Comunhão, Economia Civil e Economia Social.