"Deus responderá favoravelmente a Faraó. Falas de Deus – indagou Amenhotep –, já o fizeste mais de uma vez. A que Deus te referes? Como és de Zahi e di Amu, presumo que te refiras ao boi arador a que no Oriente dão o nome de Baal, o Senhor, não é verdade? O sorriso de José feneceu-lhe nos lábios. Ele apenas abanou a cabeça. Meus pais, os sonhadores de Deus – disse ele – fizeram o seu pacto com outro Senhor. Então só pode ser Adonai, o noivo – acudiu veloz o soberano, por quem a flauta geme nos algares e que torna a erguer-se”. (Thomas Mann, José e seus irmãos)
Há muitas formas de carestia, muito diversas entre si. O nosso tempo atravessa a maior carestia de sonhos que a história da humanidade conheceu.
Produzida pelo atual capitalismo individualista e solitário, a carestia de sonhos é uma forma muito grave de indigência: a quem falta pão não desaparece a fome, mas quem se priva de sonhos acaba por não notar sequer a sua ausência; cada vez mais sufocados por objetos de consumo, habituamo-nos a um mundo pobre de desejos; rapidamente ficamos tão pobres que nem nos damos conta da pobreza. Não é possível sonhar com anjos, com o paraíso, com os grandes rios do Egito, quando se adormece à frente da televisão! Para sonhos grandes é preciso adormecer com uma oração nos lábios; ou acordar com um livro de poesia – que velou o nosso sono – aberto sobre o peito.
O jovem José achou-se de novo, inocente, lançado numa masmorra; uma vez mais rejeitado, de novo no fundo de um ‘poço’ (40,15). No entanto, a prisão veio a ser, também, o lugar onde desabrochou completamente a sua vocação que fora anunciada pelos sonhos proféticos quando era ainda menino. Os primeiros sonhos tinham provocado a sua ida como escravo para o Egito; os sonhos que irá interpretar na terra do Nilo hão-de ser o caminho para que os seus grandes sonhos de jovem se realizem; e para reencontrar os seus irmãos-vendedores e o seu pai.
Foi numa prisão que teve início uma nova fase da vida de José, decisiva para ele e para o seu povo (não é raro que uma ‘prisão’ seja lugar de início de uma vida nova). No ‘poço’, José passou de contador de sonhos a intérprete dos sonhos de outros. Nos seus tempos de rapaz narrava os sonhos que tivera mas não os interpretava. A dor de ter sido odiado e vendido pelos irmãos, a condição de escravo e depois a prisão tinham-no amadurecido revelado a si mesmo. No cadinho do sofrimento e da injustiça descobriu a sua vocação, passou a ser servidor dos sonhos dos outros.
A quem falta pão não desaparece a fome, mas quem se priva de sonhos acaba por não notar sequer a sua ausência.
Na prisão encontravam-se também dois altos funcionários da corte: o encarregado das bebidas e o padeiro do faraó (40,1). “...tiveram um sonho cada um, e cada sonho com significado diferente” (40,5). Na manhã seguinte “José foi ter com eles e achou-os muito preocupados”, e perguntou: “Porque é que estão hoje com o ar tão carregado?”. Responderam: “Cada um de nós teve um sonho e não há ninguém capaz de nos dar a devida interpretação” (40,7-8). Contaram ambos os seus sonhos a José que os interpretou. Apenas quem já sonhou e teve coragem para contar os seus sonhos pode tornar-se hermeneuta dos sonhos dos outros. Parece haver uma lei paradoxal no que regula muitas coisas sublimes da vida: o melhor intérprete de sonhos dos outros é quem mais sofreu por causa dos próprios sonhos.
Apesar da carestia de que falámos, continua a haver quem sonhe, principalmente em países pobres de PIB mas que são os mais ricos de sonhos; e esses sonhos irão em breve produzir também riqueza. Mas ter sonhos e não encontrar alguém que os interprete é causa de grande infelicidade. Os sonhos são sempre coisa séria; decisivos, no entanto, são os ‘sonhos de olhos abertos’: projetos, anseios, vontade de dar a volta a situações difíceis, desejo de justiça, de felicidade, de um futuro melhor; os sonhos que nos deixam entrever o nosso lugar no mundo. Tal como ontem, também hoje, porém, os sonhos precisam de intérpretes, de alguém que saiba decifrar o seu conteúdo - sem tais intérpretes os sonhos apagam-se. Sempre importantes, os intérpretes são mesmo fundamentais quando se trata de jovens na idade dos sonhos grandes.
José começa a interpretar sonhos para fazer um dom a dois companheiros de prisão: “José disse-lhes: «Só Deus é que pode dar-nos a interpretação dos sonhos. Contem-me lá aquilo com que sonharam»” (40,8). A interpretação ‘boa’ dos sonhos é a que nasce da gratuidade, não a que é feita para obter lucro (“Só Deus é que pode dar-nos a interpretação dos sonhos”). A escassez de bons hermeneutas para os nossos sonhos explica-se por esta gratuidade essencial. São um dom raro, mas não raríssimo. Os ‘guias espirituais’ pertencem a esta preciosa categoria de pessoas: gente que escuta e interpreta os nossos sonhos e sinais. A boa interpretação de sonhos é gratuidade pedida e oferecida. Não é profissão, e quando se torna profissão deixa de ser boa.
José dá interpretações muito diversas aos dois sonhos: prevê a libertação do encarregado das bebidas, anuncia a execução do chefe dos padeiros – o que virá a acontecer dias mais tarde. O valor moral de um intérprete de sonhos mede-se pela sua honestidade, pela capacidade e coragem de comunicar as interpretações que não gostaríamos de ouvir. Ontem como hoje, são muitos os intérpretes aldrabões que dizem só as interpretações agradáveis de ouvir. Interpretações erradas podem vir também de intérpretes honestos mas sem coragem e amor bastantes (enquanto o seu carisma de interpretação de sonhos se não extingue, que ele desaparece quando não é protegido pelo sofrimento de interpretações difíceis). Conheci jovens cuja vida se tornou muito difícil, estragada, até, devido a maus intérpretes dos seus sonhos: perante sinais evidentes de uma vocação diferente da que o jovem pensava ter, não tiveram nem honestidade nem coragem para dar a interpretação correta; em vez de assumirem a dor que a verdade implicava, manipularam os sonhos e alimentaram nos jovens a ilusão e consequente desilusão, frustração, infelicidade. Confiar em quem manipula sonhos é pior que a morte do sonho por falta de intérprete.
As carestias de sonhos não terminam por si. Só acabam se, em certo preciso momento, decidirmos reaprender a sonhar. Não é impossível.
“Passaram-se dois anos. Certo dia também o faraó teve um sonho. Sonhou que estava junto ao rio Nilo e que do rio subiam sete vacas de belo aspecto e gordas, que se puseram a pastar por entre os juncos. Logo atrás delas, outras sete vacas subiram do rio, magras e de mau aspeto … E então as vacas magras e de mau aspecto devoraram as sete vacas de belo aspecto e bem nutridas” (41,1-4). O faraó acordou, perturbado; voltou a adormecer e logo teve outro sonho: “Sete espigas de trigo bem gradas e belas cresciam num único pé. Mas logo a seguir nasceram outras sete espigas, vazias e secas por causa do vento de leste. E estas sete espigas vazias engoliram as sete espigas gradas e belas” (41,5-7). “Na manhã seguinte estava muito preocupado e mandou chamar todos os adivinhos e sábios do Egito e contou-lhes os sonhos. Mas ninguém conseguia dar-lhe a interpretação” (41,8).
A narrativa tem então um ponto de viragem. O encarregado das bebidas a quem, dois anos antes, José tinha interpretado o sonho lembrou-se dele. Falou ao faraó, que o mandou chamar. José revelou-lhe imediatamente a chave para compreender o que estava para acontecer, bem como a natureza do seu modo de operar: “...não depende de mim. Deus é que há-de dar a resposta para bem [shalom] do Faraó” (41,16). Trata-se de um momento crucial, que assinala uma nova era: o fim da idade dos adivinhos, dos arúspices , dos magos e o início do tempo da profecia.
José é assim o primeiro profeta de Israel. Na verdade, a narração do sonho do faraó contém os traços essenciais que distinguem a autêntica interpretação profética da obra de adivinhos e falsos profetas de todos os tempos. A interpretação profética é dom-gratuidade, pois é já exercício de um carisma que o ‘profeta’ recebe; não é coisa que ele fabrique nem técnica aprendida numa qualquer escola. É um dom que para operar precisa de ser acolhido pelo seu destinatário, que nele deve acreditar. Impele sempre à ação e à mudança.
Na sociedade atual não faltam consultores for-profit; proliferam magos e horóscopos, mas sente-se muito a falta de bons intérpretes de sonhos; os poucos que há não são procurados nem escutados; correm o risco de desaparecer por falta de procura. O Faraó acreditou na interpretação-profecia de José e atuou. “Hão-de vir sete anos de grande fartura em todo o Egito. Mas depois virão sete anos de fome. Toda a gente se esquecerá da fartura que havia antes no Egito e a fome levará o país à ruína [as vacas-espigas magras que devoram as gordas]” (41,29-30). Seguidamente continuou José: “... Vossa Majestade deveria procurar um homem inteligente e sábio para o encarregar de dirigir o país … e estabelecer governadores pelo país a fim de recolherem um quinto da produção do Egito, durante os sete anos de fartura” (41,33-34).
Os tempos ‘de vacas magras’ passam. As carestias, mais tarde ou mais cedo, terminam naturalmente, ainda que por vezes com elevados custos. As carestias de sonhos, pelo contrário, não terminam por si. Só acabam se, em certo preciso momento, decidirmos reaprender a sonhar. Não é impossível. Fizémo-lo já depois de misérias enormes e indescritíveis: guerras, ditaduras, depois de lutas fratricidas, após a morte de crianças. Juntos, quisemos de novo sonhar. Pusemo-nos então a escutar poetas, santos, artistas, os quais souberam interpretar os nossos sonhos novos. Juntos, rezamos e choramos, recitamos as poesias suas-e-nossas, cantamos as suas-e-nossas canções. Pessoas e povos podem renascer e apenas deste modo ressuscitam verdadeiramente.
“O faraó tirou da sua mão o anel com o selo real e colocou-o na mão de José. Mandou-lhe vestir roupas de linho fino e colocar ao pescoço um colar de ouro” (41,42).
Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 06/07/2014, e no site da Economia de Comunhão. Tradução: António Bacelar.