Como bem escreveu o professor aposentado da Universidade Federal de Viçosa, Osvaldo Ferreira Valente, em artigo publicado no portal EcoDebate, “o assunto é cansativo, dá sono e eu confesso que também o considero muito chato. Mas apesar da chatice, ele é importante para garantir a presença de água nas torneiras de nossas casas”. E é por isso que, seguindo a proposta de dedicarmos o mês de março ao tema da água, falaremos, neste post, da gestão de recursos hídricos no país.
Há muito se discute, no mundo todo, a descentralização na gestão de recursos hídricos e a tomada de decisões compartilhadas entre os diferentes atores, desde o consumidor às indústrias. Um marco do debate foi a Conferência de Dublin, em 1992. É exatamente por isso que, no Brasil, a atual legislação referente às águas é considerada moderna, apesar de requerer aprimoramento tecnológico e desenvolvimento das estruturas.
A Lei Federal 9.433, conhecida como Lei das Águas, é de 1997 e foi a responsável por instituir a Política Nacional de Recursos Hídricos e prever a criação dos Comitês de Bacias Hidrográficas. São esses comitês, constituídos como espaços colegiados, que trouxeram a participação popular na tomada de decisões sobre a gestão hídrica. Assim, foram criados colégios deliberativos e agências executivas na esfera federal (Conselho Nacional de Recursos Hídricos e Agência Nacional de Águas, ANA); na esfera estadual (Conselho Estadual de Recursos Hídricos ou órgãos gestores estaduais) e na esfera municipal os Comitês e Agências de Bacias, que já são 36 em todo o país, com aproximadamente 2.500 conselheiros.
Além dessa mudança para a lei anterior (o Código de Águas de 1934), houve ainda a definição da condição da água como um “bem de domínio público”, levando a Lei a criar a figura da outorga de direito de uso, ou seja, para usar é preciso ter licença. Já a condição de recurso natural “dotado de valor econômico” gerou a figura da “cobrança pelo uso”. Até então, a água era considerada um bem livre, sem valor econômico, e, de acordo com o antigo Código de 1934, enquanto estivesse completamente contida em uma propriedade particular, a ela pertencia.
Com todo esse respaldo, são os Comitês, formados teoricamente por representantes da sociedade civil e membros do poder público, que vão deliberar sobre o uso da água e ocupação do solo dentro da bacia hidrográfica à qual pertence o Comitê. São também eles que deveriam aprovar a quantidade de água a ser retirada de cada manancial. Já os conselhos estaduais e federal deveriam possuir funções normativas e de mediação de conflitos originados nas instâncias inferiores.
Em entrevista na última edição da revista Cidade Nova, Renato Tagnin, mestre em engenharia civil e urbana, professor do Senac-SP e membro do Aliança pela Água, uma iniciativa que reúne 30 ONGs para propor soluções e cobrar providências do poder público, ressaltou que “nesse sistema de gestão que temos falta um detalhe, que é importante: a democracia. Ou ainda, a informação”. Para o professor, “quem tinha poder no velho modelo migrou para esse e manteve as práticas do modelo anterior nas decisões”.
Para Tagnin, este momento de crise hídrica no estado de São Paulo, por exemplo, “passou longe” dos Comitês. “Nenhuma política importante, no campo da água, passou pelos Comitês de Bacia para serem decididas. A população nem sabe que existem Comitês de Bacia e que ela poderia estar lá decidindo [...] Mas se é um instrumento para democratizar e ninguém sabe que ele existe é a prova da sua total inadequação”, diz.
Ao ser questionado sobre a outorga e o próprio Comitê, o secretário executivo dos Comitês PCJ, ao qual pertence o Sistema Cantareira, lembra que o sistema de gerenciamento dos recursos hídricos brasileiro é novo e está em “permanente evolução”. “Muito já foi realizado e há, ainda, muito por se fazer. O atual período de estiagem deverá, espero, alavancar investimentos na consolidação desses sistemas”, ressalta. Entre os investimentos feitos para evitar a crise, Moretti destaca que os Comitês liberaram, somente em 2013, mais de R$ 40 milhões para serem investidos em melhorias ao longo da Bacia PCJ. Além disso, os Comitês investiram, desde a sua criação, em 1993, mais de R$ 160 milhões no combate às perdas nas Bacias PCJ. Estes recursos são obtidos através do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) e pela Cobrança do uso dos recursos hídricos (federal e estadual).
Acesse aqui a íntegra do último relatório do Comitê PCJ.
Você sabia?
As bacias hidrográficas brasileiras não respeitam a delimitação geopolítica do país, mas seguem a delimitação geográfica, que leva em conta os relevos. Por isso, fazem parte de uma mesma bacia hidrográfica diferentes cidades de um ou mais Estados. As Bacias PCJ, onde encontra-se o Cantareira, por exemplo, possuem uma área territorial de 15.303,67 km², sendo aproximadamente 92,6% no estado de São Paulo e 7,4% em Minas Gerais.
A água flui por gravidade dentro da bacia, indo do relevo mais alto ao mais baixo. Assim, todos os componentes das bacias hidrográficas encontram-se interligados e os rios são os veículos dessa integração. Por isso, uma contaminação em qualquer parte do percurso pode afetar toda a bacia.