Foto: Oswaldo Corneti/ Fotos Públicas
Este mês dedicamos o blog ao assunto mais falado do momento: a água. Até o dia 22 de março, Dia Mundial da Água, o debate será em torno da água e do desenvolvimento sustentável, tema da celebração.
Mas as discussões não param por aí. No ano em que se encerra a Década da Água, proclamada pelas Nações Unidas, acontecerá o Fórum Mundial da Água na Coreia do Sul, com o tema “Água para Nosso Futuro”. Organizado pelo Conselho Mundial da Água (WWC), o objetivo do evento é destacar a temática dos recursos hídricos na agenda global e reunir organizações internacionais, políticos, representantes da sociedade civil, cientistas, usuários de água e profissionais do setor. Lembrando que o Fórum Mundial da Água de 2018 será realizado em Brasília.
Já falamos diversas vezes sobre o problema da escassez hídrica e da contaminação da água na revista Cidade Nova e no nosso site. Este mês, a Cidade Nova faz uma reflexão sobre a seca no Sudeste brasileiro, trazendo a opinião de três pesquisadores do setor. Para complementar a discussão, abaixo, você confere a íntegra da entrevista com o pesquisador e professor da PUC-Goiás, fundador do Instituto Trópico Sub-úmido (ITS), Altair Sales Barbosa.
Cidade Nova - Qual é a situação ambiental do Cerrado?
Altair Barbosa - O Cerrado, se levarmos em consideração a complexidade, a história evolutiva e as comunidades vegetal e animal, praticamente não existe mais, nas suas feições originais. E a isso podem se acrescentar os aquíferos que compõem o Cerrado, que também chegaram no seu nível mais crítico. É um problema que acontece há 10 anos e vem sendo agravado.
O que existe atualmente são pequenas manchas, pouco significativas, em algumas áreas que representam unidades de conservação nacional, como o Parque das Emas, na Chapada dos Veadeiros, e algumas áreas ocupadas por comunidades indígenas.[...]
De modo geral, as matas ciliares estão todas degradadas. As áreas de recarga dos aquíferos chegaram em 100% de degradação. Essas são as áreas mais importantes do Cerrado, onde os aquíferos se recarregam. E são eles que alimentam a maioria das bacias do continente sul-americano, inclusive as do Sudeste, Norte e Nordeste.
Um aquífero é recarregado nas áreas mais planas, nos chamados chapadões. A chuva que cai em uma área em declive escorre rapidamente e provoca cheias repentinas nos rios, que duram de 1 a 3 dias. Essa água não infiltra e não alimenta os lençóis profundos. A água que alimenta os lençóis profundos, que são os aquíferos, cai na parte plana, só que ela infiltra em função da vegetação nativa que existia anteriormente nesses locais.
Vale destacar que o Cerrado pode ser considerado uma floresta de cabeça para baixo: 2/3 da planta fica abaixo da linha do solo e somente 1/3 aparece no solo. Essas plantas têm um sistema radicular complexo e adaptado a esse tipo de solo e quem abastece esses aquíferos são elas.
O Cerrado foi transformado em área de avanço da agricultura, foi colocado no planejamento brasileiro como área de extensão de políticas agrícolas monocultoras. Assim, as plantas que são colocadas no local têm raiz superficial (como a soja, milho etc) e não absorvem a água da chuva como deveriam; consequentemente, não abastecem os aquíferos.
Como esses aquíferos são muito antigos, com o passar do tempo eles vão perdendo a sua capacidade, diminuindo. É como se fosse uma caixa d’água com vários furos. À medida que a água vai diminuindo na caixa, o primeiro furo deixa de jorrar água, depois o segundo, e assim sucessivamente até chegar ao nível de base. Hoje os nossos aquíferos já chegaram ao nível de base.
Os rios que dependem desses aquíferos são os rios permanentes do Brasil, que, claro, dependem das águas da chuva, mas são sustentados pelos aquíferos na época da seca. É o caso da maioria dos rios do estado de São Paulo, provenientes do aquífero Guarani. [...]
Com isso os rios, com o passar do tempo, vão perdendo a sua vazão. Os rios menores vão desaparecendo. Os maiores, que têm as suas nascentes que vão migrando das partes mais altas para as partes mais baixas, continuam sobrevivendo precariamente. São esses rios que alimentam os grandes reservatórios. [...]
Há quanto tempo era possível prever que o Cerrado fosse chegar nesse ponto de não conseguir reabastecer os aquíferos?
Existe pouca água porque quem abastecia os lençóis freáticos era a água da chuva sugada pela vegetação nativa. Uma vez que se retirou a vegetação nativa das áreas de recarga dos aquíferos eles foram consequentemente. Então, mesmo que chova grande quantidade, mesmo que haja normalização das precipitações pluviométricas daqui para frente, quando chegar uma nova estiagem o problema vai se agravar ainda mais. Mesmo com a regularização das chuvas o problema não volta a se normalizar porque o problema não está no céu, mas debaixo do solo, nos aquíferos.
"Mesmo com a regularização das chuvas o problema não volta a se normalizar porque ele não está no céu, mas debaixo do solo, nos aquíferos"
Se você estudar a hidrografia do Brasil você vai ver que as cabeceiras dos rios praticamente são águas emendadas umas às outras, mesmo correndo em direções opostas. Eles todos têm suas grandes nascentes nos grandes aquíferos que se formam no planalto central brasileiro, que era a área coberta por cerrado. Só que essa vegetação foi retirada e esses aquíferos estão impossibilitados de receber as águas que recebiam anteriormente.
Essa situação pode ser revertida?
Não e aí é que está o grande problema. [...] O Cerrado é uma formação clímax, que tem mais de 45 milhões de anos. Isso significa que uma vez degradado ele não se recupera jamais na plenitude de sua biodiversidade.
Nós conhecemos cerca de 13 mil plantas nativas do Cerrado, que estão hoje classificadas botanicamente. Entretanto, com a quantidade de tecnologia que se conhece para produzir essas plantas em viveiro, temos uma capacidade de produção de no máximo 250 espécies.
"O Cerrado é uma formação clímax, que tem mais de 45 milhões de anos. Isso significa que uma vez degradado ele não se recupera jamais na plenitude de sua biodiversidade"
Com isso, as gramíneas e palmeiras nativas e outras plantas que levam centenas de anos para atingirem a sua idade adulta uma vez degradas não se recuperam mais. Mesmo porque a vegetação do Cerrado está associada a um tipo de solo que uma vez modificado não sustenta mais a vegetação nativa. E praticamente todo o solo do Cerrado já foi modificado através da introdução de gramíneas exóticas e através do manejo para implantação de grandes projetos agropecuários.
O que precisaria ser feito agora é uma remediação do que aconteceu no passado?
O que deve ser feito agora é: primeiro, deixar intacto o que existe e esperar para ver o que vai acontecer. Pode ser que daqui há algum tempo nós tenhamos tecnologia para reproduzir e restaurar algumas plantas do Cerrado.
O segundo ponto é investir na pesquisa científica para ver se são criadas tecnologias de reabastecimento dos aquíferos por via tecnológica e não por via natural. Criar tecnologias para colocar, em áreas degradadas do Cerrado, grandes “funis” para que se possa retroalimentar os aquíferos de modo a amenizar a situação.
Isso exigiria investimento em pesquisa científica, que hoje não acontece. A maioria das universidades brasileiras incentiva muito pouco a pesquisa científica, que, nas nossas universidades, está associada a cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado. E nem sempre um doutor é pesquisador. Para ser pesquisador é preciso vocação. No Brasil se resolveu classificar como pesquisador aqueles que têm titulação e nós não conseguimos avançar na questão da pesquisa porque nem todos tem a vocação.
Se você quiser enquadrar o pesquisador na burocracia da universidade você acaba com ele porque ele é avesso a esse tipo de burocracia. Ele precisa ser livre para criar e buscar soluções.
Na sua opinião, por que São Paulo chegou neste ponto de total seca?
Por duas causas: a primeira é a questão dos aquíferos que levam água para São Paulo e que dependem dos aquíferos do centro do Brasil. Os rios que alimentam as represas de São Paulo já chegaram em um nível de vazão baixo, quer dizer, a quantidade de água que transportam já é baixo em relação à quantidade de água que transportavam há alguns anos.
A segunda causa, como consequência do modelo econômico que se implantou no Brasil, trouxe para a economia, geografia e sociologia um fenômeno chamado desterritorialização, ou seja, através da grilagem e também pela ausência do Estado nas áreas rurais houve uma migração muito grande para as cidades. Elas cresceram de forma desordenada, de modo que a população foi se tornando cada vez mais exigente.
Em uma área onde não há asfalto, por exemplo, as pessoas começaram a exigir asfalto e, com isso, foi se impermeabilizando o solo, impedindo a sua transpiração e a penetração da água para alimentar os lençóis freáticos. Com isso, a água cai, escorre, provoca cheias violentas e depois vai embora para o mar.
Outro aspecto é que a cidade, tal como está estruturada, estimula o consumismo: consumo extremo de energia elétrica, de água – tem que abastecer piscinas, fontes, milhares de chuveiros, banheiros – porque a população aumentou de forma desordenada.
Além do mais, a cidade toda pavimentada provoca ilhas de calor, afetando diretamente mudanças climáticas locais, que formam bolhas de ar ou de baixa pressão e impedem a entrada das frentes de alta pressão, as frentes frias. Muitas vezes elas são tão grandes que rechaçam as frentes de alta pressão, que produzem as chuvas nas cidades. Então, essa ilha de calor formada pelas cidades provoca todas essas anomalias climáticas.
Então teria sido possível evitar toda essa situação em São Paulo com planejamento?
Sim, com planejamento adequado. Por exemplo, o rio Tietê nunca deveria ter sido ocupado nas suas áreas de vazão, de várzea, porque é um rio de planície, de inundação das várzeas. Se a área está toda pavimentada, ela escorre violentamente para a sua bacia. Ele vai cobrar, quando está cheio, as suas áreas de inundação e como essas áreas estão ocupadas por casas, as águas vão escorrer diretamente para os bueiros e como não são canalizadas para serem reaproveitadas nos reservatórios elas vão embora para o mar.