“Nunca antes neste país” alguém poderia imaginar que fôssemos despencar tão rápido e cair tão fundo. Em menos de um ano o Brasil passou de quase pleno emprego para um índice de quase 10% de desempregados. Nosso parque industrial, hoje, é comparado ao que foi na década de 1940. Economia em recessão, inflação batendo nos dois dígitos, cenário futuro totalmente descolorido.
Mas os números mais interessantes do Circo Brasil estão no picadeiro da política. Do tipo “vossa excelência é um ladrão”, “o nobre senador é um crápula”, “a presidente mentiu à nação”, e por aí vai. Conseguimos ter, ao mesmo tempo, o pedido de abertura de um processo de impeachment da presidente da república e a investigação correndo solta do presidente da Câmara e do Senado... Bingo! São coisas que deixariam Maquiavel arrepiado.
Não quero aqui repetir o que os ouvidos brasileiros estão cansados de ouvir e os olhos de ver. Só venho recomendar uma leitura interessante para os tempos que correm.
A Mosca Azul - Frei Betto. Foto: Divulgação
É um velho livro – esgotado, até, na editora, mas acessível nos bons sebos do país. A mosca azul, do Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo). Mineiro e dominicano, Frei Betto escreveu 60 livros, muitos deles publicados no exterior. Levou para casa dois Jabutis, em 1982, por Batismo de sangue (Editora Rocco), e, em 2005, por Típicos Tipos (Editora A Girafa). Estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia.
Mas o Frei Betto tem na bagagem também milhares de quilômetros trilhados pelas Comunidades de Base, pela Teologia da Libertação e na organização de movimentos populares. Conheceu os porões da ditadura, onde morou por quatro anos. Apoiou Lula quando ele ainda era um sindicalista barbudo e com pouca expressão. Acompanhou o PT desde os seus primórdios, testemunhou sua fundação, batalhou para eleger Lula Presidente e, com ele no Planalto, assumiu o cargo de Assessor Especial da Presidência. Foi também coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.
Uma trajetória de valor não só pelos cargos e engajamento. Também porque o Frei Betto é uma pessoa rica em humanidade. Envolveu-se na mobilização popular, politicamente continua acreditando que o socialismo é a solução, e nem por isso perdeu o norte da sua fé, que parece viver com muita lucidez e coerência.
Por falar em coerência, depois de apenas um ano nas suas funções palacianas, Frei Beto desembarcou do governo. Percebeu que a nau da democracia que atravessava o rio da história sinalizou uma coisa e fez outra. Orientou-se para o “leste” e deu uma guinada brusca para o “oeste”, como ele mesmo descreve. No seu entendimento, traiu os pobres e abraçou os ricos. Lula foi picado pela mosca azul do poder.
“A picada da mosca azul inocula nas pessoas doses concentradas de ambição e do poder. As pessoas, então, são mais receptoras ao veneno da mosca quando vivem situações nas quais dispõem, de fato, de possibilidades mais concretas de exercer um poder maior. Isto é, quando as condições objetivas são favoráveis aos impulsos que estão sendo estimulados no plano subjetivo”. (Leandro Konder)
Sem mais delongas, transcrevo alguns trechos desse livro, na sequência em que foram escritos, para deixar quem me ler faminto e sedento de lê-lo. É, a meu ver, leitura bastante adequada para os turbulentos tempos que correm. Para refletir, processar e pensar o Brasil que queremos.
Frei Betto. Foto: Wikimedia
Diante dos primeiros sintomas de elitismo no interior do PT, seu fundador advertiu: “Queremos deixar bem claro uma coisa: no dia em que os dirigentes do PT não puderem mais ir às portas das fábricas, aos locais de trabalho, ou lá onde se luta pela terra, é melhor fechar o PT. Não somos um partido de gabinetes, de salas apertadas, de conchavos nos bastidores (...)”. (pp. 93-94)
Lula encerrou dizendo que “o socialismo que nós queremos se definirá por todo o povo, como exigência concreta das lutas populares, como resposta política e econômica global a todas as aspirações concretas que o PT seja capaz de enfrentar (...)”. Hoje me pergunto se o líder petista queria mesmo aquilo ou demonstrou condescendência à posição defendida por Weffort e por mim. A dúvida acentuou-se quando, na Presidência da República, ele declarou em público que nunca fora de esquerda e evitou promover reformas de estruturas, como a fundiária. Ora, o poder não muda as pessoas, faz com que manifestem a verdadeira face. (p. 96)
(...) o político que se deixa maquiar para efeitos eleitorais periga preocupar-se mais em parecer eficiente do que em sê-lo. Governa de olho nas pesquisas de opinião, abdica de seus compromissos de campanha para submeter-se à síndrome do eleitoralismo. Conservar-se no poder passa a ser sua obsessão, e não a de administrar para imprimir melhoria nas condições de vida da maioria da população. Essa desideologização tende a reduzir a política à arte de acomodar interesses. Perdem-se a perspectiva estratégica e o horizonte histórico; já não se busca um outro mundo possível, agora tudo se reduz a cultivar uma boa imagem junto à opinião pública. (p.108)
Elege-se quem tem mais visibilidade pública, ainda que desprovido de ética, princípios e projetos. É a vitória do mercado sobre os valores humanitários. No lugar da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, entram a visibilidade, o poder de sedução e os amplos recursos de campanha. (p. 109)