Cresci vendo na estante da biblioteca de casa cinco grandes volumes vermelhos, de um autor português muito antigo. Nunca tive interesse em lê-los. Imaginava que, embora famosos, fossem maçantes e nada atraentes. Eram a obra completa de Eça de Queiroz.
Cresci vendo na estante da biblioteca de casa cinco grandes volumes vermelhos. Esse português muito antigo, que, estático, colecionou as camadas de poeira acumuladas ao longo da minha vida, teve uma chance derradeira e recente. Minha exclamação, já nas primeiras páginas, foi: quanto tempo eu perdi!. Foto: Fernanda Pompermayer
Esse português muito antigo, que, estático, colecionou as camadas de poeira acumuladas ao longo da minha vida, teve uma chance derradeira e recente. Casualmente resolvi ler A cidade e as serras. E a minha exclamação, já nas primeiras páginas, foi: quanto tempo eu perdi!
O português é arcaico, sim, mas, com raras exceções, compreensível. Nada que exceda a leitura de Saramago.
Hoje a obra de Eça é toda de domínio público e pode ser baixada gratuitamente em tablets e leitores de e-books. Mas impressa também se encontra, em edições para todos os bolsos.
José Maria de Eça de Queiroz foi um homem surpreendente, que viveu nos últimos 55 anos do século XIX. Era advogado, jornalista, escritor e diplomata. Foi cônsul português em Cuba (Havana), na Inglaterra (Newcastle e Bristol) e na França (Paris). Essa atividade lhe rendeu inspiração para algumas obras, entre elas Cartas de Inglaterra).
Sua primeira novela realista, e talvez sua obra mais conhecida, O crime do Padre Amaro, publicada em 1875, é considerada o melhor romance realista português do século XIX.
A cidade e as serras é outra obra significativa de Eça, de publicação póstuma (1901), no ano seguinte ao da morte do autor.
Nesse romance Eça tem uma linguagem rica, cheia de detalhes, e muito apurada: os adjetivos que usa são perfeitos e surpreendem porque fogem do uso corrente. Para ele, o ar é macio como algodão. O céu é terno e quente.
Ele descreve a civilização humana no seu apogeu, com todo o conforto, a beleza e o esplendor que pode proporcionar ao ser humano que habita uma cidade como Paris no século XIX. Tudo é graça, sem sombra alguma de desprezo ou de contradição. Ele deixa o leitor entrar na experiência dos personagens (Jacinto de Tormes, o “Príncipe de Grã-Ventura” e José Fernandes de Noronha e Sande) e desfrutar de todos os seus encantos. Essa é a cidade, na rua Campos Elísios, 202.
Só mais tarde o fausto e a suma abundância se revelarão insuficientes para satisfazer a alma humana. Aí se descortinarão as serras de Tormes, em Portugal, no Baixo Douro: uma natureza deslumbrante, os frutos da terra sadios, saborosos, as relações humanas próximas e francas.
“Nós devemos cercar da civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.”
“Na mesma tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo caliça parda, eriçado de chaminés de lata negra, com as janelas sempre fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só ferro, só argamassa, só estuque; linhas hirtas, ângulos ásperos; tudo seco; tudo rígido.”
“A tua civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só se obterá, nesta amarga desarmonia social, se o Capital der ao Trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável, é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfaldada miséria é a condição do esplendor sereno da cidade. Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração de caldo – não poderia aparecer nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie-gras e túbaras que são o orgulho da civilização. Há andrajos em trapeiras – para que os Efrains tenham 10 milhões no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha aromática, e surtam de colares de safiras as suas concubinas, netas dos duques de Atenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos – para que os Jacintos, em janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champagne e avivados de um fio de éter!”
“Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o Eclesiastes até Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do pessimismo. Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação de que seu mal não era mesquinhamente “jacíntico” – mas grandiosamente resultante de uma lei universal. Já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a vida, menos nas delícias mais triunfais, se resumia em ilusão. Já o rei incomparável, de sapiência divina, sumo vencedor, sumo edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores novos dos seus templos (...) Não há nada novo sob o sol, e a eterna repetição das cousas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena. E o justo como o perverso, nascidos do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efêmero, em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro no 202, padecia por ser homem e por viver – como no seu trono de ouro, entre os seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de Davi.”
Depois dessa amostra, qualquer palavra a mais estraga. O melhor é escolher uma das obras de Eça de Queiroz e se deixar seduzir pelo seu prazer.