Se você ainda não leu Orhan Pamuk, antes de mergulhar em Outras cores (Companhia das Letras, 2010) leia Istambul, Neve, Meu nome é vermelho... ou outra obra-prima desse Prêmio Nobel de Literatura. Todos valem muito a pena.
O Prêmio Nobel de Literatura, Orhan Pamuk, autor de "Outras cores", "Istambul", "Neve", e "Meu nome é vermelho". Foto: Divulgação
Digo isso porque em Outras cores Pamuk abre a alma: revela seus pensamentos mais íntimos, reminiscências da infância, do início da carreira... Conta como pensou em escrever cada um dos livros que citei acima e outros ainda. Fala porque decidiu ser escritor e quais foram as suas influências literárias. Tudo isso é muito bom de se ler quando já se saboreou os textos desse grande homem de alma turca.
Já me aconteceu de, depois de ler Istambul, por exemplo, escolher outro livro para ler de um autor que eu ainda não conhecia. A trama era interessante, a leitura valeu a pena (como quase sempre!), mas faltava alguma coisa... como uma comida com pouco tempero. É que depois de provar uma iguaria, outros alimentos tornam-se um pouco menos interessantes.
Uma das coisas que Pamuk conta e que, mais do que uma revelação, é uma confirmação para seus leitores habituais, é a complexa elaboração dos seus livros, a trabalhosa arte de escrever um romance. Nele nada é casual, as reflexões são profundas, tem densidade, mas nem por isso cansam. Para entender é necessário colocar-se na pele de alguém que nasceu, cresceu e viveu toda a vida numa cidade-símbolo, simplesmente na capital do Império Romano do Oriente. E como se isso não bastasse, também capital do poderoso Império Otomano. Além de transpirar história, Istambul é geograficamente o elo entre a Europa e a Ásia, entre o Ocidente e o Oriente. Não é uma metáfora! Uma parte da cidade fica no continente europeu e outra no asiático, separadas pelo estreito do Bósforo e pelo Mar de Mármara.
Isso explica as características psicológicas de Pamuk, que ele transfere a muitos dos seus personagens (Ka, em Neve, por exemplo). É o sentimento de pertença a uma cultura, com toda a riqueza de suas tradições, e a atração irresistível por outra.
Mas vamos a Outras cores. Não é um livro para ser lido todo de uma vez. Contém ensaios, reflexões, contos, entrevistas, concluindo com o discurso em Oslo, em 2006, ao receber o Nobel.
Uma dica: leia com calma, saboreie. E para provar, seguem alguns trechos.
Foto: Divulgação
“Quando um romancista começa a brincar com as regras que governam a sociedade, quando escava e encontra abaixo da superfície a geometria oculta da vida, quando explora esse mundo secreto como uma criança curiosa, impelido por emoções que nem consegue entender direito, é inevitável que acabe trazendo algum mal-estar para seus familiares, amigos, pares e concidadãos. Mas esse desconforto é feliz. Porque é através da leitura de romances, histórias e mitos que conseguimos entender as ideias que governam o mundo em que vivemos; é a ficção que nos dá acesso às verdades que a família, a escola e a sociedade mantêm veladas, ocultas; é a arte do romance que nos permite perguntar quem afinal realmente somos” (p. 266)
“Não se pode assumir a mesma persona de novo [em dois livros]. Não se pode continuar como antes. Cada livro que um autor escreve representa um período de desenvolvimento. Os romances de alguém podem ser vistos como marcos no desenvolvimento do seu espírito. Não se pode voltar atrás. Quando a elasticidade da ficção morre, não se pode mais movimentá-la” (p.410).
“Depois de escrever O castelo branco, percebi que a inveja – a angústia de ser influenciado por alguém – lembra a posição da Turquia quando olha para o oeste. Sabe do que falo, é de querer tornar-se ocidentalizada, e depois ser acusada de não ser autêntica. Tentar capturar o espírito da Europa e depois sentir-se culpada do impulso da imitação. Os altos e baixos desse estado de espírito lembram a relação entre irmãos competitivos. (...) A Turquia não deveria ficar preocupada por ter dois espíritos, por pertencer a duas culturas diferentes, por ter duas almas. A esquizofrenia nos torna inteligentes” (p.415).