Conversando com a América

Abril se foi. E com ele um dos grandes nomes da literatura latino-americana: Eduardo Galeano. Um homem que teve várias pátrias (Uruguai, Argentina, Espanha) e uma grande paixão: a América Latina – suas histórias, suas origens, sua dominação por antigos e novos colonizadores.

Eduardo Galeano, um dos maiores nomes da literatura latino-americana. Foto: Divulgação

Iniciou cedo sua carreira, com charges políticas, mais tarde como jornalista e escritor. Teve sua trajetória truncada pelo golpe militar no Uruguai. Em 1973, foi preso e se exilou na Argentina. Mas também lá, depois de conseguir publicar alguns livros, foi a vez de o golpe militar do general Videla, em 1976, ameaçar a sua vida. Foi acolhido pela Espanha, onde viveu até que a democracia voltasse a ser instaurada no Uruguai.

Foi nessa época tumultuada dos anos 1970, quando a maioria dos países do continente vivia em regime ditatorial que Galeano revelou ao mundo “as veias abertas América Latina”. Era um tempo em que, embalados pelas canções de Mercedes Sosa e Violetta Parra, se sonhava com uma grande pátria, do México à Terra do Fogo, em que a justiça social e a fraternidade brilhassem de sol a sol.

Em As veias abertas da América Latina Galeano disseca a história do subcontinente com foco na exploração econômica e no controle politico. É sua obra mais difundida, o registro de uma época, um clássico, sem sombra de dúvida sua obra-prima.

Apesar disso, ao reler o livro à distância de anos da sua publicação, ele soa anacrônico, datado. Conceitos como “Primeiro e Terceiro Mundo” e “Países subdesenvolvidos” saíram de moda, embora então estivessem gravados a sangue no solo e na pele da nossa gente. O próprio Galeano afirmou que lê-lo agora lhe resultava impossível: escreveria novamente as mesmas coisas, mas de outra forma.

A sensibilidade e o talento de Eduardo Galeano seguiram enriquecendo a literatura universal com obras preciosas. Em quase todas, com exceção de outro tema pelo qual era apaixonado (o futebol), é clara a sua perspicácia em ler e denunciar a política e suas mazelas. A justiça social é quase uma obstinação nesse uruguaio inconformado e irreverente, e o seu olhar profundo e perscrutador é um dos grandes legados que nos deixa.

Durante oito anos dedicou-se à pesquisa e a escrever a trilogia Memória do Fogo, um painel da história latino-americana nos últimos 500 anos. Com emoção e envolvimento, personagens, mitos, lendas, batalhas, vencedores e vencidos desfilam diante dos leitores.

Em outra obra, Ser como ellos y otros artículos (Siglo Veintiuno, 2010) – em português, Ser como eles (Editora Revan) – ele revela muito da sua experiência ao conceber Memória do Fogo: “Enquanto eu escrevia, sentia que conversava com a América como se ela fosse uma pessoa, como se fosse uma mulher que me contava seus segredos e me revelava de que atos de amor e de violações ela provém. E também sentia que eu conversava comigo mesmo. Tudo o que aconteceu com a América, de uma forma misteriosa, aconteceu comigo. Embora eu não soubesse, os personagens da sua história eram gente que eu tinha amado, ou tinha odiado, se bem que tivesse esquecido ou acreditava ter esquecido. Uma viajem do eu ao nós: dizendo América eu dizia a mim mesmo. E procurando-a eu me encontrava” (pp. 20-21).

Eduardo Galeano teve seu trabalho premiado de diversas formas. Entre os reconhecimentos de maior expressão estão o American Book Award, EUA (1989), o Casa de las Américas, Cuba (1975, 1978), o Prêmio Aloa, das editoras dinamarquesas (1993), o Prêmio do Ministério da Cultura do Uruguai (1982, 1984, 1986), o Prêmio Stig Dagerman, Suécia (2010), e o Prêmio Alba de las Letras, Cuba (2013).

Em 1999, Galeano foi o primeiro autor homenageado com o prêmio à Liberdade Cultural, da Lannan Foundation (Novo México – EUA).

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Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).