Há 20 anos o Rio de Janeiro deixou de ser apenas a Cidade Maravilhosa e carrega uma nova alcunha: Cidade Partida. O novo título lhe foi atribuído pelo jornalista e escritor Zuenir Ventura. Antes de escrever A Cidade Partida – que ganhou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Melhor Reportagem (1995) – Zuenir foi correspondente de guerra na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro. A obra é o resultado da sua experiência vivida num ambiente duro, marcado pela violência, ao mesmo tempo em que a sociedade civil começava a se mobilizar para combatê-la e mitigar a exclusão social.
Seu livro marcou época e essa época mudou bastante. Em novembro de 2013 o Instituto Data Popular realizou uma pesquisa, a “Radiografia das Favelas Brasileiras”, com resultados surpreendentes. Seus pesquisadores, membros das próprias comunidades devidamente capacitados, investigaram 63 favelas, em dez regiões metropolitanas do Brasil, coletando depoimentos de 2 mil pessoas. Fruto da pesquisa foi também o livro Um país chamado favela, de autoria de Renato Meirelles e Celso Athayde (Editora Gente, 2014). Na edição de abril da Cidade Nova, entrevistei Meirelles. Confira!
Um país chamado favela revela a nova época vivida pelo Brasil. Mas o seu maior mérito está em desbancar estereótipos e preconceitos seculares tidos por quem vive “no asfalto” em relação aos moradores do “morro”. Em trânsito pela imensa rede de favelas nacionais, um observador atento encontrará hoje mais operários, comerciantes, guardas noturnos, office boys, diaristas, motoristas, cabeleireiras, auxiliares de escritório e costureiras do que bandidos profissionais. São estes últimos, no entanto, que servem como referências icônicas das comunidades. A reprodução obsessiva desse estereótipo se deve, sobretudo, ao roteiro do noticiário policial espetacularizado. Na falta de conhecimento profundo sobre o assunto, apela-se ao modelo raso de representação, já impresso na memória coletiva (p.135).
O livro fala por si: é revelador, impressionante e de uma novidade avassaladora e positivamente inesperada. É um divisor de águas para quem o lê com abertura e espírito fraterno.
Aí vai um aperitivo...
Um país chamado favela
Quem comanda o processo de mudança no Brasil? Quem lança tendências? Quem aprova ou reprova um programa social, uma linha de eletrodomésticos ou uma nova música? Resposta simples: são os ingressantes no mercado de consumo, de modo especial os 11,7 milhões de habitantes das favelas, grupo que equivale a 6% da população brasileira (p.28).
Desmentindo a crença vigente, 81% dos moradores gostam da comunidade em que estão fixados e 66% não estão dispostos a abandoná-la. De maneira plena ou com restrições, 62% admitem ter orgulho do local onde vivem. Se existe esse amor e essa fidelidade ao lugar, a principal razão é o estabelecimento de fortes laços sociais entre os moradores. A favela é, desde sempre, responsável e solidária. Ali, o cidadão tem quase sempre com quem contar. Há alguém que pode lhe emprestar algum dinheiro ou o cartão de crédito na hora do aperto. Há outro que pode tomar conta de seus filhos enquanto ele trabalha. E há sempre aquele que pode ouvir suas confissões, no divã improvisado no boteco ou no salão de beleza. Quem recebe, evidentemente, acaba por retribuir. A lei da reciprocidade impera na favela (p.31).
Os chefes de família desejam ver os filhos na universidade, mas buscam, eles mesmo, um diploma em curso superior. Gente que sempre viveu de salário cogita, agora, montar uma empresa na comunidade. Pode ser uma pizzaria, um albergue, uma loja de presentes ou uma oficina de reparos automotivos. Há possibilidades em todos os setores. Formidavelmente, pessoas com até 60 anos, homens e mulheres, veem a vida em aberto. Ainda há jogo pela frente. [...] No total, 76% das pessoas opinaram que a vida melhorou no período imediatamente anterior à pesquisa. No entanto, poucas atribuem esse avanço às políticas públicas ou aos empregadores. Para 14%, a família é a principal responsável pela evolução. Deus é citado por 40%. Segundo 42%, a ascensão é resultado do próprio esforço (p.32).
Hoje, felizmente, abrem-se brechas no céu carrancudo do egoísmo. Pensa-se, aqui e ali, na viabilidade de projetos inspirados na chamada ‘economia social’, em que o sucesso depende de desenvolvimento integrado. É quando ganha o empreendedor, ganha o colaborador, ganha a comunidade, ganha o meio ambiente. Mais do que isso, a economia social é professora. Ela elege novos valores e altera costumes. Mesmo num país capitalista, ela constitui laços de cooperação e inspira atos de generosidade. [...] Viver essa experiência de aprimoramento, no âmbito pessoal e das corporações, exige uma desconexão tática das antenas ideológicas do preconceito. Esse salto civilizatório depende de mãos corajosas para mover o botão, reposicionar o dial e eleger uma nova estação comunicadora” (pp. 80-81).
Hoje, a favela pulsa economicamente, mas precisa ser decifrada. Ela não pode ser encarada como a terra do Eldorado, a ser vasculhada, explorada, despojada metodicamente de seus recursos. Precisa, pois, ser respeitada, ouvida, e figurar como parceira protagonista no teatro dos negócios (p.81).
Ao contrário dos guetos, a favela brasileira parece sempre aberta. Historicamente, ela desce ao asfalto para fazer a economia girar, para produzir o evento cinético do trabalho, para empreender na vida da cidade. A favela é, quase sempre, centro de irradiação. Dali, provêm o verso, a melodia, a força operária, o modelo de invenção, a receita da solução, a consciência crítica e os amores de quem cuida, dos seus e dos outros (p.165).
Confira a entrevista de Renato Meirelles à Revista Cidade Nova.