A ressurreição de Poirot

Há um certo preconceito em relação aos livros ditos “policiais”, considerados por alguns como literatura de massa. Depende do que se entende por literatura. Há livros cuja finalidade é agregar conhecimento científico – no sentido amplo do termo – ou acadêmico. Há outros que constroem no leitor uma determinada visão de mundo. Mas há também ficção, crônicas, contos, poesia... Quem teria coragem de dizer que Carlos Drummond de Andrade não fez literatura? Ou contestar Gabriel García Márquez?

Literatura é puro conhecimento. E pode ser puro entretenimento, puro prazer também. Sim, porque ler abre a mente e nos faz mergulhar numa outra realidade: aquela criada pelo autor, com sua sensibilidade, capacidade de expressão, talento, muitas vezes genialidade.

Ler abre a mente e nos faz mergulhar numa outra realidade

Nos livros de suspense há esmero na composição da trama, eles desenvolvem e aguçam a atenção do leitor para os detalhes – uma experiência válida também para a vida além das páginas. Afora isso, é indiscutível a riqueza do vocabulário, das expressões muitas vezes refinadas e elegantes.

É nessa vertente que se encaixam os livros de Agatha Christie, a “Rainha do Crime”. Agatha (1890-1976) escreveu mais de 80 livros, que venderam mais de um bilhão de cópias no original, inglês, e outro bilhão em 50 idiomas diferentes. Ela só perde para a Bíblia e para Shakespeare.

Agatha Christie. Foto: Divulgação

Além dos livros policiais e de seis romances escritos sob o pseudônimo de Mary Westmacott, Agatha é autora de uma dúzia de obras teatrais. Entre os personagens mais famosos que criou para elucidar seus crimes misteriosos e difíceis de desvendar está o famoso detetive belga Hercule Poirot, marca registrada da escritora britânica.

Em sua autobiografia (1965), Agatha descreve os insights que teve para criá-lo: “Por que não seria belga meu detetive? Deixei que crescesse como personagem. Deveria ter sido inspetor, de modo a poder ter certos conhecimentos sobre crimes. Seria meticuloso, ordenado, pensei com meus botões, enquanto arrumava meu quarto. Um homenzinho bem ordeiro. Parecia-me até que o via, um homem muito alinhado, sempre cuidando de colocar tudo no devido lugar, gostando dos objetos aos pares, gostando das coisas quadradas, e não redondas. E seria muito inteligente – teria muitas células cinzentas –, essa era uma boa frase, devia recordá-la: ele possuiria não poucas células de matéria cinzenta. Seu nome seria espetacular – um desses nomes como existiam na família de Sherlock Holmes. Como era mesmo o nome do irmão dele? Mycroft Holmes! E se chamasse ao meu homenzinho Hércules? Ele seria um homem baixo – Hércules seria mesmo um bom nome. Seu sobrenome era mais difícil. Não sei por que me decidi por Poirot. Se fui eu própria quem o inventou, ou se o vi em algum jornal, ou escrito em algum lugar, não sei — mas assentei que seria esse o nome. Combinava bem, não com Hércules, com s, mas sim com Hercule – Hercule Poirot.” (Autobiografia (I), Nova Fronteira, 1977, pp. 265-266)

Na sua longa vida, Agatha Christie foi uma escritora prolífica e bem sucedida. Não há motivos para queixas. Mas para os admiradores de suas obras, 80 livros podem ser lidos, relidos... e fica um gostinho de quero mais.

Agatha teve inclusive a perspicácia de “matar” seu personagem principal: Poirot. No livro Cai o pano (traduzido para o português por Clarice Lispector!) ela conduz seu personagem ao mesmo local onde ele estreou em suas obras, a mansão de Styles (O misterioso caso de Styles). Lá ele se envolve numa nova trama e morre. Escrito em 1940, deveria ser publicado só depois da morte da autora, mas acabou sendo lançado um ano antes, em 1975. A morte de Hercule Poirot foi matéria de primeira página do The New York Times, em 6 de agosto de 1975.

2014 marca um fato inédito na experiência de Agatha e de Poirot. Passados 38 anos da morte da escritora, seus herdeiros autorizaram a também britânica Sophie Hannah a “ressuscitar” o detetive de bigodes bem cultivados.

Os crimes do monograma. Foto: Divulgação

A escritora já escreveu seis novelas policiais, publicadas em 27 países e agora abraçou a ousada aventura de recriar um caso de mistério envolvendo Poirot. Hannah afirmou em entrevistas recentes que não pretendeu imitar Agatha Christie. Leitora aficionada da Dama do Crime, ela recriou os hábitos e o modus operandi do detetive, no pleno respeito a sua personalidade e a seus traços psicológicos. Mas a autora é ela. Os Crimes do Monograma saiu no Brasil pelos tipos da Nova Fronteira, tradicional editora de Agatha.

Confesso que engrosso a fila dos fãs de Agatha Christie que vibraram com o ocorrido. E a leitura do livro revelou a honestidade de Sophie Hannah. Ela consegue, sim, recriar o personagem, mas o enredo não é de Agatha: é de Sophie. A trama é envolvente, mas mais complexa (ainda!) do que nas obras da Criadora. Poirot continua usando suas expressões em francês, mas não são as mesmas! O Poirot de Agatha não diria jamais: “Sacré tonnerre” e sim “par Dieu”. Mas esses são detalhes... meros detalhes. O importante e que Poirot está de volta!

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Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).