A imprensa internacional repercutiu nesta semana a notícia de que o governo iraquiano quer aprovar uma lei que, entre outras coisas, reduz a idade mínima para o casamento forçado de mulheres dos atuais 18 anos para 9 anos. Isto valerá, se aprovado, apenas para os xiitas, que representam 60% da população iraquiana.
Não vou perder linhas condenando o que já é mesmo indefensável. Mais importante é refletir sobre os fundamentos da crítica que pode ser posta a um projeto como esse. Abrimos espaço, assim, para uma pergunta de fundo: que categorias de pensamento nos legitimam a condenar uma lei como essa? É possível fazer isso sem violar o respeito pela alteridade de uma cultura que não conhece e não se pode compreender?
É muito difusa hoje em dia, inclusive em ambientes acadêmicos, uma antropologia que considera o homem apenas do ponto de vista de suas interações sociais. Assim, o ser humano seria definido em sua essência pelo meio no qual vive e seu conjunto de valores seria meramente fruto do arsenal de idéias e princípios que regem a comunidade humana na qual ele se desenvolveu. Não nego que essa linha de pensamento tem algo relevante a dizer. No entanto, ela, por coerência, deve depor suas armas diante de casos como o da Lei Jaffari.
Do ponto de vista lógico, a perplexidade do chamado Ocidente (conceito impreciso, aliás) com as normas que podem ser aprovadas pelo governo do premiê Nurial-Maliki é mero fruto de uma concepção particular que tem como pressuposto seu próprio sistema de valores. Diante de uma sociedade diferente da sua, o Ocidente, ou a parte dele que endossa essa visão, torna-se automaticamente impotente para esboçar qualquer crítica. Resta-lhe a contemplação e a resignação. Em coluna na Folha de S. Paulo, na última terça-feira, João Pereira Coutinho é preciso quando alerta que, em nossos tempos, com a reprodução automatizada dessa visão ideológica da pessoa, qualquer crítica ao outro é taxada de preconceito.
Não há solução fácil para essa equação, mas se não for possível admitir que há um núcleo duro que acompanha o homem desde sua concepção à sua morte e que o define como pessoa, não há sequer possibilidade de contato com o outro. Não basta definir o ser humano por suas interações sociais, é necessário vê-lo como sujeito autônomo e constituído por uma mesma essência onde quer que se insira culturalmente. A ideia do homem construído por sua interação social perde o sentido, torna-se carta branca para legitimar qualquer ação. Para fugir da ingenuidade da ética kantiana, estamos dando a mão de nossas crianças em casamento.