No artigo anterior, apresentei a primeira parte dos motivos que me levam a questionar a presidente chilena Michelle Bachelet em sua pretensão de trabalhar pela legalização do aborto em seu país. Argumentei que o feto é um ser humano e que, além disso, é também uma pessoa humana. Mais precisamente argumentei contra esta distinção, que me soa mais como quimera metafísica.
Reconhecer que o feto é uma pessoa, no entanto, não significa admitir que o aborto deva ser proibido. Rebaterei duas argumentações sérias e relevantes levantadas pelos que admitem a humanidade do feto e, ainda assim, defendem o direito ao aborto. A primeira e mais corriqueira é a da autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. Quem sustenta essa posição considera que a criminalização do aborto fere esse direito inalienável da mulher de decidir sobre si mesma. Daí deriva a comodidade intelectual de acusar de machismo quem combate o direito ao aborto.
Não resta dúvida de que a mulher deve ser autônoma sobre si e ter o direito de decidir o que fazer sobre seu corpo. Mas até onde pode-se agir em nome dessa autonomia? Se uma ação feita por mim (ou pelo meu corpo autônomo, se preferir) implicar dano a outra pessoa, ainda assim tenho direito de agir em nome de minha autonomia? Para mantê-la imaculada, poderei argumentar que ao, desferir um tiro fatal contra meu desafeto, não estou fazendo mais do que exercer minha liberdade e autonomia de apertar um gatilho? Afinal, meu corpo é autônomo para apertar ou não um botão e nada nem ninguém deveria me impedir de fazê-lo. A consequente morte de meu oponente não me diz respeito, pois não altera o fato de eu estar simplesmente exercendo minha autonomia.
A existência do feto não nega a autonomia da mãe, mas a lembra de que, na sociedade, a coexistência requer renúncias pessoais e a capacidade de estabelecer vínculos duradouros
Obviamente é uma posição insustentável. Mas se já admitimos que o feto é uma pessoa humana como qualquer outra, então não há diferença substancial entre o tiro e o aborto. Afinal, o feto não é parte do corpo da mãe. Ou seja, a mulher deve ser livre e ter autonomia sobre seu corpo, mas essa liberdade encontra barreiras bem definidas. Como qualquer liberdade e autonomia exercida no âmbito de uma sociedade regida por um contrato, a da mulher não lhe permite causar danos a outro membro daquela sociedade, ao menos não sem que haja uma severa responsabilização. Pois bem, o feto reúne todas as condições para se colocar diante da mãe com a mesma alteridade de qualquer outro membro adulto da comunidade. Mantê-lo vivo não infringe a liberdade da mãe mais do que a proibição de matar qualquer cidadão ao seu redor.
A segunda forte argumentação em favor do aborto é aquela proposta por Judith Thomson com o mito do violinista. Em poucas palavras, a filósofa norte-americana constrói um cenário hipotético em que um homem foi sequestrado por uma sociedade de apreciadores de música e submetido a um procedimento que conectou seus rins ao corpo de um violinista para que, por nove meses, o infeliz fique preso a ele e impeça que morra. Depois disso, por algum motivo que não vem ao caso, o sequestrado e o violinista poderão se desconectar sem que alguém morra por isso.
Thomson constrói um cenário em que não há resposta racional senão a de que a vítima do sequestro não tem obrigação alguma de dar sobrevida ao artista. Assim como ele, a mãe, em uma gestação, não teria obrigação de manter a vida do feto, pois nem ela nem o sequestrado de Thomson desejaram encontrar-se naquelas circunstâncias. Estaria, portanto, o protagonista do relato na mesma condição em que qualquer gestante se encontra, correto? Não. Há uma diferença substancial e ela foi destacada com interessante vigor por João Pereira Coutinho em uma coluna assinada em abril deste ano, na Folha de S. Paulo. O violinista se apresenta como um parasita e um usurpador que se aproveita da vítima. Alguém será capaz de sustentar que o feto é também um parasita do corpo de sua mãe? Ou que a mãe foi vítima de uma violência como foi o personagem de Thomson?
Nossa geração não consegue despertar de seu delírio de onipotência. Por isso, vê tudo como afronta aos seus direitos
O cenário criado por ela, portanto, peca por ter elementos alheios à relação do feto com sua genitora. No lugar, proponho outra cena, que, acredito, se aproxime mais da condição de dependência que caracteriza a gravidez. Nela, um sujeito A está para cair de um penhasco, mas se sustenta agarrando-se ao braço do sujeito B. Digamos que nem A nem B jamais tenham desejado se encontrar naquela situação nem tenham agido para tal, mas, por uma eventualidade, se encontrem nessa condição. Digamos também que a situação não ofereça risco algum à vida de B. É legítimo sustentar que B não tem obrigação de manter A preso a si e ajudá-lo a sair dessa situação de dependência vital em que se encontra? Seria B autônomo o suficiente sobre seu corpo para simplesmente desprender-se de A? Ou, ao fazê-lo, ele estaria provocando sua morte? B não tem culpa por A se encontrar em tamanha dependência, mas terá ele alguma responsabilidade? Sim, terá. Não sou apenas eu que digo, mas qualquer sistema jurídico contemporâneo lhe atribuirá tal responsabilidade. Da mesma forma, há uma responsabilidade sobre o ser humano em gestação.
Mas não é justo descarregar sobre as mulheres essa responsabilidade, dirão os defensores do direito ao aborto. Nisso eles têm razão. Concordo, não é justo. Fazer isso é, sim, adotar uma posição machista. A responsabilidade não pode recair apenas sobre a mãe. Ela se estende, em primeiro lugar, ao pai e, em seguida, também a toda a comunidade em que a pessoa está inserida. Importante, no entanto, é perceber que são duas coisas diferentes. Admitir essa injustiça com as mulheres não significa legitimar o aborto. Não se resolve uma injustiça promovendo uma outra contra o feto, que também é inocente. Será mais proveitoso se eu, você e Bachelet buscarmos saídas que contemplem a preservação da vida da mãe e do feto, em vez de tentar encontrar uma contradição inconciliável entre os dois. A existência do feto não nega a autonomia da mãe, mas a lembra de que, na sociedade, a coexistência requer renúncias pessoais e a capacidade de estabelecer vínculos duradouros. Nossa geração não consegue despertar de seu delírio de onipotência. Por isso, vê tudo como afronta aos seus direitos.