Antes do filme, pouco se fez para exaltar a figura de Cássia Eller – talvez a maior intérprete feminina da música brasileira dos anos 90 para cá. Coloco um "talvez" porque há uma Marisa Monte na espreita. São vozes díspares, contemporâneas (o 1º de Marisa é de 1989 e o de Cássia é de 1990), mas importantes em igual medida.
Cássia Eller. Foto: Divulgação
Desde a sua morte, em 29 de dezembro de 2001, o que de mais relevante surgiu em torno da cantora carioca foi uma biografia (fora de catálogo), escrita pelos jornalistas Eduardo Belo e Ana Cláudia Landi, de nome Apenas uma Garotinha - A História de Cássia Eller; e o irregular musical dirigido por João Fonseca, Cássia Eller - O Musical, lançado nos palcos no ano passado.
O documentário de Paulo Henrique Fontenelle (de Loki e Dossiê Jango) é o melhor tributo que Cássia recebeu até agora. E não só pela envergadura do projeto, que cobre boa parte da história da artista, mas pela franqueza na abordagem, algo exigido pela própria Maria Eugênia Vieira Martins, companheira de Cássia por 14 anos. Está tudo lá: a timidez, as drogas, o homossexualismo, o furacão no palco, a mãe do Chicão, as amigas e a morte.
Trazer uma versão "oficial" do falecimento, aliás, mesmo 14 anos depois, é fundamental! Muita gente ainda acha que uma overdose matou a roqueira, tese veiculada por setores da imprensa na época. Cássia Eller, na verdade, foi vítima de três paradas cardíacas, numa clínica no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
O material de arquivo é riquíssimo, com entrevistas, shows, bastidores e passagens de sua intimidade no ambiente familiar. Ainda melhor são os depoimentos, que ajudam a traçar o perfil e o tamanho da força musical de Cássia. Entre risos e lágrimas, voltamos a lamentar a interrupção precoce de uma carreira já brilhante. Era o começo do amadurecimento da voz e de uma melhor percepção sobre o repertório e sonoridade. Certamente nos entregaria interpretações magistrais nos anos e discos seguintes.
Passada a avalanche emocional proporcionada pelo longa-metragem, logo vem a nostalgia musical. Qual seria o melhor disco de Cássia Eller? Mesmo tendo feito um Acústico impecável, dos melhores que a MTV já produziu, Cássia atingiu o auge artístico (e de popularidade) a partir de Com Você Meu Mundo Ficaria Mais Completo, de 1999. Ali ela ficou gigante. Suavizou o canto, encampou baladas e passou a ser cortejada pelo primeiro time da MPB, com direito a músicas de Caetano e Gil.
É um álbum que ainda celebra a amizade e parceria com Nando Reis, que lhe entregou quatro composições (incluindo o mega-hit O Segundo Sol), e assumiu toda a produção. Pela primeira vez, após seis discos, a cantora entregou um registro só com temas inéditos, incluindo no repertório uma turma mais "lado B": Itamar Assumpção (Aprendiz de Feiticeiro) e Luiz Melodia (Esse Filme Eu Já Vi). Em Pedra Gigante, uma surpresa: a mãe de Cássia, Nanci Ribeiro, faz uma participação vocal.
Muitos torcem o nariz por esta Cássia operando nos moldes da grande indústria – sim, na época fazia algum sentido falar nisso. Que veem neste álbum uma caretice sem fim, forjando uma cantora pop/MPB que depõe contra uma biografia mais raivosa e grunge. É bem verdade que os arranjos estão ali para moldar uma produção "padrão broadcast", com seus inúmeros timbres e evoluções nas cordas. Seria mais uma caricatura do que a "essência" marginal de Cássia.
O documentário de Fontenelle tem a resposta. E vem de uma observação astuta de Chicão, que reclama que a mãe mais berra do que canta no palco. Com Você... inaugura esta nova Cássia, ciente da rebeldia punk, fiel à pegada soul e disposta a brigar entre os grandes da MPB. Acho que ela ganhou. Só não deu tempo para que fosse de goleada.