Uma campanha, uma falácia

Ao cruzar uma banca de jornal num dia desses, eis que me deparo como uma Leandra Leal na capa de uma revista. Ostenta um lema, inscrito sobre a camiseta branca: #precisamos falar sobre aborto. O ar é de campanha, de mobilização. A publicação em questão é a revista TPM, da Trip Editora.

De cara, pelo histórico da mesma, desconfio de que abordagem não seja assim tão “neutra” e democrática como sugere o título da campanha. Prefiro, porém, me contrariar e acreditar que o trabalho jornalístico tenha sido apresentar as diversas vozes e opiniões sobre o assunto.

Quando há este ideário de aplicar a maior isenção possível na apuração de uma reportagem, quem ganha é o leitor, abastecido por diferentes teses e argumentos. Mesmo quando exista um posicionamento claro de uma publicação sobre um tema em específico – que sempre é saudável, se reservado aos editoriais –, ele jamais deve se furtar de ouvir vozes dissonantes, buscar as incoerências e paradoxos.

"Não acredito que a descriminalização vai resolver o problema. Vamos apenas trocar os modelos de caixões"

No miolo da revista, lá estava o material preparado e com muitas fontes consultadas, o que demonstra uma possível abordagem aprofundada sobre a questão. Seu conteúdo, porém, estava muito distante da provocação colocada no chamariz da capa. Falar sobre o aborto, ao menos na TPM, só é possível desde que seja para encampar a descriminalização do ato. Não encontrei uma opinião contrária nas oito páginas reservadas ao “debate”.

O problema, talvez, seja a confusão que se cria entre o que é campanha e o que é reportagem. A linguagem é jornalística, mas o objetivo é um só: sustentar uma espécie de manifesto. A certa altura, parecia até texto partidário ou de ONG. Nomes de personalidades, em sua maioria da área artística e da mídia, reforçam o tom de abaixo-assinado.

Como leitor atento, fiquei decepcionado. Suscitar debates, provocar dúvidas, é o que move o faro e a realização jornalística. Foi o que me fez comprar a revista. Demorei para entender que se tratava de uma campanha. E campanhas tem um lado só.

"A autonomia do presente, ao meu ver, jamais será argumento suficiente para roubar o futuro de crianças"


Confrontar opiniões é o melhor exercício para apurar (ou abalar) as próprias convicções. Sou contra a legalização do aborto, em consonância com o que pensa a revista Cidade Nova. E os motivos são vários, que vão além das crenças religiosas. Acho, sim, que o debate é moral e não só prático, como defendem muitos abortistas.

Entendo que há uma mortalidade expressiva de mulheres no Brasil que praticam o aborto em lugares clandestinos. Mas não acredito que a descriminalização vai, necessariamente, resolver o problema. Vamos apenas trocar os modelos de caixões.

A autonomia do presente, ao meu ver, jamais será argumento suficiente para roubar o futuro de crianças. Quem descreve isso com precisão é escritor português João Pereira Coutinho, em artigo para a Folha. Eis um trecho: “Creio que uma sociedade será tão mais civilizada quanto maior for a proteção jurídica concedida a esse 'ser vivo em potência’. Porque, como diria Henry Miller (1891-1980), escritor americano que está longe de ser um beato, ‘não conheço maior crime do que matar o que luta para nascer’”.

Concordo com a premissa da TPM: existe um tabu na discussão sobre o aborto no Brasil, relegado normalmente apenas ao período eleitoral. Respeito também a campanha promovida pela revista, ainda que não concorde com seu teor. Se há a coragem em projetar a hashtag #precisamos falar sobre aborto, é preciso ser honesto com o que isso sugere. Vozes silenciadas, é bom lembrar, há por todos os lados.

Tags:

legalização, debate, aborto



Sobre

Pitacos, reflexões e provocações sobre música, cinema, jornalismo, cultura pop, televisão e modismos.

Autores

Emanuel Bomfim

Emanuel Bomfim nasceu em 1982. É radialista e jornalista. Escreve para revista Cidade Nova desde 2003. Apresenta diariamente na Rádio Estadão (FM 92,9 e AM 700), em SP, o programa 'Estadão Noite' (das 20h às 24h). Foi colaborador do 'Caderno 2', do Estadão, entre 2011 e 2013. Trabalhou nas rádios Eldorado, Gazeta e América.