Onde está a graça?

Por conta de compromisso de trabalho para emissora de rádio em que trabalho em SP, tenho visitado quase diariamente o Salão do Automóvel, realizado no Pavilhão de Exposições do Anhembi, na zona norte da capital paulista. Apesar de extremamente bem realizado e concorrido, jamais iria ao evento por conta própria. Ainda não consigo compreender de onde vem todo esse fetiche pelos inúmeros modelos desenvolvidos pela indústria automobilística. Não é uma ojeriza ao tipo de transporte em si - que é eficiente, confortável, razoavelmente seguro, etc. O que me espanta é a babação toda por estas máquinas de elevação de status. Quanto maior o valor, melhor é sua imagem na praça, ao menos é o que indica o senso comum entre aqueles que vagam pelos inúmeros corredores do local. Pior: na prática, o que está exposto são, em sua maioria, objetos de consumo inalcançáveis (já que passam da casa dos milhões). Estão ali apenas para seduzir o olhar e preencher a memória fotográfica dos smartphones. Haja foto! Nem festa de fim de ano de escola infantil é tão registrada assim.
 

Salão do Automóvel

Não teria orgulho algum em dizer, por exemplo: "filha, hoje vi uma linda Ferrari vermelha". Não sinto também qualquer senso de glamour ou sofisticação por estar perto de outros modelos caríssimos, só exibidos nas mãos de executivos de sucesso, jogadores de futebol e artistas do showbiz. É bom deixar claro: meu pessimismo não é com o mercado em si, nem com o modelo capitalista. Sei o quanto essa indústria emprega, gera impostos e faz a economia de um país girar. O que me impressiona de fato é o carro não ser visto apenas como um bem funcional, prático, assim como devem ser os meios de transporte, que nos levam pra cá e pra lá. Nem quero entrar no debate do modelo de sociedade como um todo, organizado em torno do carro, deixando nosso ar mais poluído e as ruas entupidas. A indignação é com esse culto exacerbado ao veículo de quatro rodas.

Não tenho nada contra os fãs de automóveis. Tenho muitos amigos que carregam essa paixão pelo mundo automotivo. Só não consigo compartilhar da mesma devoção. Queria entender porque é tão legal cultivar esse amor pelas máquinas. Pra mim, é um bem que se torna cada vez mais ordinário, por mais possante e bonito que possa ser.

Na linha comportamental, o que mais me incomoda é essa associação entre carros e mulheres, presente e disseminada amplamente no Salão do Automóvel. Em todos os estandes, centenas de modelos posam com seus sapatos de salto alto esmagadores ao lado dos carrões. Nada expressam, mesmo ouvindo uma saraivada de "elogios" nada gentis. Não há nada mais boçal do que um carro girando como um frango de padaria, escoltado por um loira em trajes sensuais. Elas trabalham arduamente nessas semanas de evento. Precisam estar bonitas. Precisam ser simpáticas. Precisam aguentar as bolhas no pé. E precisam aguentar um monte de macho babão. Garantem seu dinheiro com dignidade. Muitas vivem apenas de freelas como esse no Salão.

Estranho é a turma que acha isso desejável: um carro do ano e um mundo a seus pés. No meus devaneios, carros serão apenas bolas de metal. Apenas. 
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consumo, carros, mulheres, desejo, consumismo



Sobre

Pitacos, reflexões e provocações sobre música, cinema, jornalismo, cultura pop, televisão e modismos.

Autores

Emanuel Bomfim

Emanuel Bomfim nasceu em 1982. É radialista e jornalista. Escreve para revista Cidade Nova desde 2003. Apresenta diariamente na Rádio Estadão (FM 92,9 e AM 700), em SP, o programa 'Estadão Noite' (das 20h às 24h). Foi colaborador do 'Caderno 2', do Estadão, entre 2011 e 2013. Trabalhou nas rádios Eldorado, Gazeta e América.