Cinema transforma a vida de adolescentes da periferia

Dentre os perversos estereótipos vinculados a moradores de zonas periféricas nas grandes metrópoles brasileiras, o da falta de aptidão para atividades “sofisticadas” me parece um dos mais cruéis. Como se a pobreza resultasse necessariamente na mais completa alienação cultural ou até – o que é pior – na falta de capacidade de reverter o quadro de miséria intelectual, além da material.

Todos têm sonhos e projetos próprios. Como viabilizá-los é o “X” da questão. Não há dúvidas de que o número de oportunidades costuma ser maior para quem possui mais recursos. Este estofo financeiro, que não é nenhum mal (é bom frisar, antes que engraçadinhos comecem a espernear contra a elite), dá liberdade de escolha, um dos parâmetros centrais na conquista da felicidade.

Quem mora na periferia nem sempre dispõe de um leque tão vasto de escolhas, estudantis e profissionais. Muitas vezes garantir a sobrevivência está acima de qualquer devaneio mais elaborado. Num país como o nosso, a discrepância de renda gera estes sonhos interrompidos. Digo isso de uma forma mais generalista, sabendo que existem inúmeros “heróis” que romperam com esta lógica.

A esperança (ou utopia?) é que o desenvolvimento irá igualar, cada vez mais, as janelas de oportunidades. E isso, claro, passa pela educação. Antes que isso se concretize num plano majoritário, diversas pequenas ações têm buscado diminuir este déficit e oferecer um horizonte mais pleno para jovens de periferia. Entres eles, está o Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias. A experiência do projeto, fundado pelo apresentador Luciano Huck, é o que embasa o filme Na Quebrada, com estreia marcada para esta quinta, 16 de outubro.

Em síntese, são histórias de vida “salvas” pelo cinema. De gente que foi transformada pela pedagogia do audiovisual. De meninos e meninas que descobriram profissões e ocupações num segmento normalmente fomentado só por jovens de classe média e alta. Não é para menos: uma escola superior de cinema custa, no mínimo, dois mil reais por mês. Há, também, as universidade públicas, mas que possuem poucas vagas e um vestibular concorridíssimo.

Paulo Eduardo, codiretor do filme, é a inspiração para a história de um dos cinco personagens de Na Quebrada. Ele é o Zeca, interpretado por Felipe Simas.  Quando adolescente, tomou um tiro na barriga durante uma briga de traficantes. Ele não tinha nada a ver com o conflito deflagrado. Só estava na hora e no lugar errado. Seu pessimismo com o entorno só foi superado depois que começou a trabalhar na videolocadora do tio e descobriu a paixão pelo cinema. Queria se dedicar profissionalmente à área, mas não dispunha de grana suficiente para bancar uma faculdade. Eis, então, que surge o Criar como solução para seus problemas. Deu tão certo que hoje Paulo trabalha para a Spray, produtora de Fernando Grostein Andrade, diretor do longa-metragem e irmão de Huck.

Esta é apenas uma das belíssimas passagens de um filme que se arquiteta nestas pequenas epifanias cinematográficas. Em Na Quebrada, foram envolvidos 25 alunos do instituto, que atuaram nas mais diversas funções, técnicas, criativas e dramatúrgicas.

Assistir ao filme é não só aplaudir a concretização de um projeto bem estruturado. Em tempos de eleição, é perceber que não será o clientelismo e o dinheiro de programa social que vão mudar as perspectivas de adolescentes da periferia. Eles estão sedentos pelo protagonismo. Seja no cinema ou em qualquer outro campo. Se há formação (também humana), há esperanças.

 

 

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Sobre

Pitacos, reflexões e provocações sobre música, cinema, jornalismo, cultura pop, televisão e modismos.

Autores

Emanuel Bomfim

Emanuel Bomfim nasceu em 1982. É radialista e jornalista. Escreve para revista Cidade Nova desde 2003. Apresenta diariamente na Rádio Estadão (FM 92,9 e AM 700), em SP, o programa 'Estadão Noite' (das 20h às 24h). Foi colaborador do 'Caderno 2', do Estadão, entre 2011 e 2013. Trabalhou nas rádios Eldorado, Gazeta e América.