Pedagogia de um crime

O problema do racismo não é só do futebol. É evidente. Concerne à sociedade brasileira como um todo. Diferente de grande parte dos espaços públicos e privados, num ambiente de estádio as ofensas se tornam conhecidas por conta da presença midiática cada vez mais forte e detalhista. Câmeras captam quase todo tipo de ação, tanto dentro do gramado quanto nas arquibancadas. Ao verbalizar seu xingamento inescrupuloso dirigido ao goleiro Aranha, do Santos F.C., a torcedora gremista Patricia Moreira da Silva achava que estava protegida pelo anonimato das massas. Na multidão, o autor de um grito nem sempre é facilmente reconhecido. Ledo engano. O flagrante foi explícito: “macaco!”, bradou a moça enquanto as lentes dos canais ESPN focalizavam seu rosto.
 

Foto: Reprodução

É claro que ela não foi a única a cometer o crime naquela área detrás do gol da Arena do Grêmio – setor que costuma arregimentar torcedores organizados. Para “seu azar”, ela só se tornou a protagonista de um ódio coletivo e anacrônico. Como pode, em pleno século 21, num país democrático, tanta gente verbalizar a plenos pulmões uma visão de convívio e de humanidade tão deturpada?

Sim, é preciso extrapolar nossas indignações, reprovar a ação, buscar pedagogia no retrocesso. E ainda confiar que a Justiça também irá cumprir seu papel, como rege a legislação. No âmbito desportivo, o STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) foi exemplar. O Pleno, segundo instância do Tribunal, deverá manter a condenação, excluindo definitivamente o Grêmio da Copa do Brasil. A argumentação de que o clube não pode se responsabilizar pela ação de seus torcedores é falaciosa. O próprio código desportivo brasileiro deixa claro que os torcedores são, sim, expressão e parte da instituição clubística.

Há quem também planifique o tipo de crime, já que o estádio comporta todo tipo de ofensa. De fato, o politicamente correto está longe de ser um código de conduta com alta adesão nas arquibancadas das arenas brasileiras. O trio de arbitragem que o diga. Ainda assim, há uma diferença brutal entre o xingamento folclórico e aquilo que sofreu o goleiro Aranha. Um reside num plano do deboche e da provocação (mesmo se indesejado). O outro, além de crime, é mais grave. Não há desculpa ou argumento que o sustente.

Acuada, como era de se esperar, a gremista Patricia voltou a encarar as câmeras, em entrevista coletiva. Desta vez o semblante era de desespero, de choro incontrolável. Pediu desculpas. Sua vida se transformou num inferno. O linchamento popular, alavancado pela exposição midiática, veio de maneira feroz. Perdeu o emprego e mal pode sair de casa. É o tipo de “solução” que só demonstra o grau de imaturidade da sociedade brasileira. Tendo o culpado, lave-se a alma com sangue.

São os tempos do aprofundamento maniqueísta, como bem definiu o psicanalista e professor acadêmico Joel Birman em artigo para o caderno Aliás no último domingo (07/09), no Estadão. É o combate que suprime o diálogo. O que vale é vencer ou se achar vencedor. De preferência, sinalizando a humilhante derrocada do adversário.

Não quero decretar a morte de Patricia, como se tem feito por aí. Na Justiça, ela irá sofrer as consequências de uma atitude condenável. O perigo, mais uma vez, é jogarmos para escanteio um debate que precisa ser cada vez mais estendido. Se o racismo ainda é latente, é preciso assumir este déficit e defender e disseminar outros valores. Definitivamente não é da vingança que vai nascer uma nova cultura.



Sobre

Pitacos, reflexões e provocações sobre música, cinema, jornalismo, cultura pop, televisão e modismos.

Autores

Emanuel Bomfim

Emanuel Bomfim nasceu em 1982. É radialista e jornalista. Escreve para revista Cidade Nova desde 2003. Apresenta diariamente na Rádio Estadão (FM 92,9 e AM 700), em SP, o programa 'Estadão Noite' (das 20h às 24h). Foi colaborador do 'Caderno 2', do Estadão, entre 2011 e 2013. Trabalhou nas rádios Eldorado, Gazeta e América.