Michelle Bachelet é uma das figuras mais interessantes do cenário político latino-americano. A presidente chilena conseguiu promover grandes avanços em seu país transitando entre a economia de mercado e o desenvolvimento social com mais desenvoltura do que fez Lula por aqui, por exemplo.
Nesta semana, ela ganhou manchetes na imprensa internacional com a declaração de que o aborto será legalizado ainda neste ano em seu país. Defender publicamente o direito ao aborto é algo pouco popular no Brasil. Sabemos que a maioria dos nossos políticos o fariam se pudessem, mas o medo da rejeição eleitoral os impede. Voltando ao caso chileno, exporei em duas etapas (uma agora e outra na próxima semana) minha oposição às pretensões da presidente. Digo isso logo de cara, pois não quero fazer ninguém perder tempo.
Caro leitor, se você acredita que toda oposição ao aborto é necessariamente um machismo, uma alienação, denota reacionarismo ou defesa dos interesses da elite burguesa, fique à vontade para continuar sua navegação na internet.
Aos que chegaram a este parágrafo, vamos ao ponto. O feto é um ser humano. Não há dúvidas e dificilmente conseguiremos prosseguir o debate se não partirmos desse pressuposto. O próprio embrião é uma célula, portanto uma vida, com DNA humano autônomo em relação a qualquer outro exemplar de sua espécie. Não é parte da mãe. Encerra em si a substância do humano. Para alcançar outras etapas de sua existência precisará somente ser nutrido, exatamente como ocorre com qualquer um em qualquer outra fase da existência humana. Mas este não é o centro da discussão, portanto não me delongo mais no assunto.
A primeira objeção com que me deparo entre os que admitem a humanidade do feto é de que, mesmo sendo humano, ele não é uma pessoa humana, portanto não teria os mesmos direitos de um ser humano adulto. A diferença soa-me mais metafísica do que qualquer outra coisa. Em poucas palavras, a distinção entre as duas condições estaria no aspecto relacional. O homem só se define como pessoa na medida em que é capaz de se relacionar com o meio e ser influenciado também por ele. Não há pessoa se não há um meio cultural e relacional que o cunhe.
Vejo algumas fragilidades nesse tipo de argumento. Obviamente o feto não se relaciona com um meio social e cultural. Também admito que o componente relacional não é acidental para o ser humano. Mas, ao menos em uma dimensão, o feto está inserido em uma dinâmica relacional profunda desde o início. Nada mais evidente do que a relação vital e visceral que mantém com sua mãe. Ao menos durante a gestação, esta relação pode ser desfeita somente com a morte. Talvez não haja vínculo mais forte e relação mais estreita do que a desses dois sujeitos. E não se trata de uma relação meramente ditada por processos bioquímicos. A psicologia já nos revelou que há componentes fortíssimos nessa intimidade, capazes de influenciar o restante da existência tanto do feto quando da mãe. Portanto, o meio no qual o feto está inserido pode ser primitivo, mas sua influência sobre ele não deve ser subestimada. Restringir a capacidade relacional do ser humano ao acesso à linguagem e aos outros símbolos que pertencem a uma comunidade humana me parece uma simplificação excessiva. E essa simplificação cobrará seu preço quando tomarmos em análise não o feto, mas o recém-nascido ou indivíduos portadores de deficiências que os impedem de dominar a capacidade da comunicação como os demais. Seriam eles pessoas como somos eu e você? Ou poderíamos admitir o direito àquilo que os pesquisadores Alberto Giublini e Francesca Minerva chamaram de “aborto pós-parto”? Na melhor das hipóteses, teríamos que admitir graus de “pessoalidade” e, portanto, graus de direito à vida não somente dos fetos, mas de indivíduos já nascidos.
Você já sabe aonde isso vai dar, não sabe? Por essas razões acredito ser necessário admitir que o feto é um ser humano e uma pessoa humana. Enfim, um sujeito. Mas isto não resolve o problema, apenas suscita novos questionamentos: ainda que se trate de uma pessoa, é desejável manter a proibição ao aborto? Ainda que se esteja diante da preservação de uma vida, uma sociedade deve necessariamente sacrificar o livre arbítrio da mãe? Essas são questões fundamentais. Sobre elas falarei na próxima semana.