Como recusar R$ 10 mil

A Suíça rejeitou no domingo passado (18) a adoção de um salário mínimo de 4 mil euros, ou R$ 10 mil. A notícia soa mal aos ouvidos brasileiros, ainda mais levando-se em conta que a recusa foi feita por meio de referendo, ou seja, foi uma decisão soberana dos próprios eleitores. O espanto é compreensível. Difícil imaginar que algo assim poderia acontecer no Brasil.

Não pretendo aqui, porém, investigar se o resultado eleitoral foi positivo ou não para os suíços. Aliás, seria uma pretensão absurda. Antes, prefiro olhar para o processo que levou um povo a declinar democraticamente uma proposta do gênero. É preciso também fazer a ressalta de que R$ 10 mil em São Paulo ou no Rio de Janeiro rendem mais do que 4 mil euros em Genebra. Essa quantia é considerada apenas suficiente para sustentar um cidadão suíço com hábitos de consumo medianos.

Voltando à questão de como se chegou ao resultado, é notável o nível de democratização que a Suíça conseguiu alcançar e o quanto seus mecanismos ajudam a superar dificuldades intrínsecas a qualquer processo democrático. O mais interessante deles é o que diz respeito à “vontade do povo” ou “volonté générale”, conceito sobre a qual se funda grande parte dos argumentos da doutrina clássica da democracia. Ao contrário do que dizia Rousseau, que nasceu em Genebra, por sinal, a vontade do povo não existe, a não ser como uma entidade abstrata e vaga. Os eleitores não tomam suas decisões de maneira racional, além disso sua vontade não é algo homogêneo e bem delineado. Ao contrário, é maleável, pode ser cunhadoa artificialmente e a propaganda política está aí para confirmar isso.

Por mais questionável que seja a vontade do povo e ainda que seja difícil poder atribuir as decisões de um pleito a algo que deriva dessa vontade, a democracia, me parece, continua sendo o arranjo institucional mais capaz de dar alguma autonomia e poder de decisão aos membros de uma sociedade. Portanto, não trato aqui de por em questão sua validade perante outras formas de governo. Ter consciência dessa dificuldade teórica e prática não significa necessariamente negar a validade da própria democracia.

Restam duas vias. A primeira, a da resignação, é a mais cômoda e também a mais usual. Basta ignorar o fato e deixar que o processo eleitoral corra normalmente, mesmo que ele se transforme em uma mera batalha de jogos emocionais e impulsos reforçados nas vinhetas televisivas de um lado ou de outro. A segunda via é a tentativa de minimizar esse fenômeno, que nada mais é do que um dos efeitos colaterais da profissionalização da política eleitoral e de sua campanha. A maneira que Genebra encontrou para isso foi aliar seu processo democrático, que faz uso frequente de consultas e referendos, a um forte incentivo à educação, em si, e à educação cívica. Cada eleitor, por exemplo, recebe em sua casa um livro com argumentações favoráveis ao “sim” e ao “não” antes de cada referendo no país.

Além disso, não é preciso dizer que o nível de instrução médio do suíço é incomparavelmente superior ao do brasileiro. A Suíça aposta pesado na instrução. O resultado do domingo passado é reflexo disso. Os suíços foram convencidos pela argumentação de setores do empresariado local que o salário mínimo fixado em 4 mil euros poderia onerar demais pequenos empreendedores e provocar um efeito inverso ao pretendido, aumentando o desemprego, que hoje é de apenas 3%. Além disso, os eleitores concordaram com a análise de que o salário mínimo estabelecido por lei poderia tornar as empresas pouco competitivas no mercado, o que afetaria a economia como um todo.

Sem entrar no mérito da questão, é inegável que uma decisão baseada neste grau de discernimento e reflexão não é fruto (ou não somente) de campanhas publicitárias convincentes, mas revela certo grau de maturidade cívica. Em outras palavras, não foi um processo decidido pelo jingle mais atrativo. Obviamente os suíços podem ter feito uma escolha que se revelará errada no futuro. A educação e a leitura não os eximem do equívoco, mas se mostram um antídoto razoavelmente eficiente contra picaretas de plantão. A Suíça não é um mundo da perfeição, mas o exemplo helvético nos interpela em ano eleitoral. Afinal, você seria capaz de recusar um salário mínimo de R$ 10 mil? Ou melhor, está disposto a estudar, refletir e debater seriamente os problemas do Brasil antes de decidir em quem votar?

Agradeço a Valter Hugo Muniz, blogueiro deste portal e habitante da Suíça, pelo subsídio dado a esta postagem.

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Sobre

As relações entre governos, organizações e demais atores no espaço físico, virtual e conceitual que extrapola as fronteiras de um Estado lança novos desafios para a atuação da fraternidade na política. A ausência de um agente com legitimidade coercitiva expõe o drama, mas também as possibilidades, da relação fraterna entre sujeitos em condição de paridade, responsabilidade mútua e liberdade para cooperar ou não uns com os outros. Neste blog, abordaremos os desdobramentos desse fenômeno.

Autores

Thiago Borges

Repórter da revista Cidade Nova há quase dois anos, é jornalista formado pela faculdade Cásper Líbero. Foi redator da agência internacional de notícias Ansa por três anos e concluiu recentemente uma pós-graduação em Filosofia Política no Instituto Universitário Sophia, em Florença – Itália.