“O jasmim de minha casa ficou completamente destruído com as chuvas e tempestades dos últimos dias; as suas florzinhas brancas flutuam em poças negras e lamacentas sobre o telhado baixo da garagem. No entanto, em algum lugar dentro de mim, o jasmim continua a florir imperturbável, com tanta profusão e delicadeza como sempre floriu”. (Etty Hillesum )
A sinfonia da vida – que no centro tem o ser humano e as relações de reciprocidade –interrompe-se bruscamente: entra em cena a dor e, depois, a morte. Passa-se isto no capítulo 3 do Gênesis e em todos os capítulos da nossa vida.
Já abundantes, os códigos simbólicos da narração tornam-se aqui riquíssimos e poderosos; alguns têm raízes em mitos ainda mais antigos do Oriente Médio ou estão com eles entrelaçados. Muitos significados simbólicos, demasiado “longínquos”, perderam-se para sempre; outros foram sendo acrescentados ao longo dos séculos, muitas vezes recobrindo com “estuque” ideológico traços e cores do fresco original que irradia a luz da aurora. Estes grandes textos poderão falar-nos ainda, “à brisa do fim do dia”, se – como os seus protagonistas – nos colocarmos “nus” perante a sua essencialidade, se nos deixarmos interrogar: "Adão, onde estás?".
O primeiro embate é a entrada em cena da serpente que dirige a palavra à mulher. Falam dos frutos da "Árvore do conhecimento do bem e do mal", os frutos que Deus tinha proibido a Adão: "Deste não podes comer. No dia em que dele comeres, ficas condenado a morrer" (2, 17). Na realidade, mais que uma proibição, trata-se de uma advertência, uma promessa: o humano não pode comer aqueles frutos porque se os comesse morreria. A serpente contesta aquela primeira promessa e formula uma outra bem diferente: "Certamente não morrereis! Deus sabe que no dia em que comerem desse fruto, abrir-se-ão os vossos olhos, e ficarão a conhecer o mal e o bem, tal como Deus" (3,4-5). A serpente termina aqui o seu diálogo. Mas as suas palavras tinham sido eficazes: a mulher confia na promessa da serpente, olha de outro modo para a árvore; os frutos parecem-lhe bons, belos, apetitosos; come deles e oferece-os ao homem. Os dois não morrem; abrem-se os seus olhos e vêem de modo diferente – com vergonha – a sua nudez. O primeiro dado do texto parece, portanto, desmentir a promessa de Deus ("morrereis") e confirmar a da serpente ("os vossos olhos hão-de abrir-se").
A serpente é logo designada o "mais inteligente" dos animais criados (3, 1). Também ela fazia parte da criação bela e boa; Adão conhecia já a sua inteligência, pois tinha-lhe dado nome. Nem todo o uso que se faz da inteligência conduz à vida e ao bem. Todos nós convivemos com gente que usa abundantes dons de inteligência para destruir, fugir ao fisco, seduzir e explorar os fracos; para enganar os outros, aperfeiçoar máquinas de jogo, aumentar a eficiência de minas anti-homem. Desta inteligência errada a terra está cheia. Existe a inteligência boa da vida, mas a seu lado está também a inteligência da serpente. Esta inteligência diversa manifesta-se como discurso, como logos. É falando que a serpente seduz e convence; usa, portanto, de modo diverso, a mesma palavra que tinha criado o mundo, o homem, a mulher e a serpente. Está nisto, também, a força da palavra; assim como sabe criar, sabe destruir, embora a Palavra que cria seja mais forte e profunda que a palavra que destrói.
A história está cheia de palavras criadoras, mas também de palavras que com a sua força nua destruiram vidas, reputações, empresas, casamentos; provocaram suicídios. Distinguir as inteligências de serpente das boas inteligências é arte fundamental da vida. É muito, muito difícil; mas a árvore da nossa vida florescerá se tivermos condições sociais, éticas e espirituais para aprender e aperfeiçoar esta arte. A vida de pessoas e instituições está marcada por encontros decisivos com estas inteligências diversas. Todos conhecemos pessoas “muito boas e muito belas” que perderam o fio de ouro da sua vida, apenas porque não souberam (ou não puderam) reconhecer a inteligência da serpente. Eu vi empresários perderem-se, não por falta de encomendas ou de lucros, mas por terem dado confiança a uma lógica diversa da lógica da vida, porque não se aperceberam da serpente por detrás de promessas de grandes ganhos e empréstimos fáceis; ou porque seguiram lógicas e conselhos que acabaram por destruir a confiança boa sobre a qual se apoiavam as suas empresas e as suas vidas.
Desde o “dia” do encontro com a serpente, a inteligência boa da vida e a inteligência da serpente convivem lado a lado, estão entrelaçadas uma na outra no coração de todas as pessoas, sem exceção. Aprende-se o ofício de viver aprendendo a reconhecer a presença desta inteligência diferente antes de mais em nós mesmos, nos nossos raciocínios (é sempre uma luz escura que não gera vida mas morte). E só num segundo momento, reconhecendo-a nos raciocínios dos outros. Depois, é precisa muita atenção para não cometer o erro – muito comum em responsáveis de comunidade ou de empresa – de considerar alguns colaboradores sempre e em tudo detentores da inteligência da serpente (e que por isso nunca se podem escutar e devem ser excluidos) e outros sempre e em tudo portadores da inteligência boa e sábia. Pelo contrário, o enredo das duas inteligências atravessa tudo e todos; mas – não o esqueçamos nunca – a inteligência da vida é mais forte, verdadeira, tenaz e acabará por vencer.
Mas dá-se um novo embate, ainda, que parece até dar razão a algumas palavras da serpente: "Eis que o homem tornou-se semelhante a um de nós, conhecendo o bem e o mal" (3,22). O homem e a mulher perderam para sempre a inocência do Éden e o encanto da primeira criação; mas o texto sugere que, paradoxalmente, ganharam também qualquer coisa de importante: entraram na idade da ética (o conhecimento do bem e do mal) e da responsabilidade: daqui por diante deverão responder pelas escolhas que fizerem ("Adão, onde estás?" - 3, 9).
Mas então poderemos deduzir ainda desta narrativa do Génesis algo importante, surpreendente, talvez. Uma vez fora do Éden, é possível reencontrar a inteireza, a harmonia, a unidade do paraíso perdido, habitando com o amor-dor os lugares fundamentais do humano: "os incômodos da gravidez", "sentirás forte atração pelo teu marido, mas ele há-de mandar em ti" (3, 16), "só à custa de muito suor conseguirás o necessário para comer", "até que um dia te venhas a transformar de novo em terra, pois dela foste formado" (3, 17-19). “Saímos” do primeiro Éden sem regresso, mas Adão (o homem) não está morto; Elohim (Deus) deu-lhe uma segunda chance: a história. A vocação da humanidade não pode consistir num voltar atrás para o primeiro Éden que já não existe, à procura, talvez, de pureza e inocência e fugindo dos lugares mais humanos da dor: a geração de filhos, as relações entre iguais, o trabalho, a morte. Podemos procurar e reencontrar as harmonias do primeiro jardim amando, com a boa inteligência da vida, precisamente os esplêndidos e dolorosos lugares do humano. Se assim não fosse, a história seria engano; o mundo, uma condenação. Pelo contrário, a história é caminho para casa; cada um leva consigo “em dote” o património de dor-amor que construiu ao longo do caminho. É esta a primeira grande dignidade do amor humano, da família, do trabalho e também do regresso de Adão à Adamah. Tarefa moral de cada um – e da humanidade no seu todo – será então esforçar-se por diminuir a dor no mundo.
É possível salvar-nos criando crianças (e ajudando-os a tornarem-se adultos), apaixonando-nos, respeitando-nos na reciprocidade, trabalhando e reaprendendo a morrer em cada geração – a nossa ainda está a caminho. Todos os dias nos salvamos com o esforço-amor das canseiras: os filhos, o trabalho e o último grande tormento. São os caminhos que temos para podermos chegar a ver ao longe uma nova terra-jardim: novas Eva e novos Adão, na brisa de cada tarde.
Texto originalmente publicado no jornali italiano Avvenire, em 09/03/2014. Tradução: António Bacelar