As palavras que nunca envelhecem são as que conseguem morrer e ressuscitar em todas as épocas. A mansidão é uma delas; era já muito grande nos salmos, no Evangelho e nas antigas civilizações orientais; os grandes mansos da história fizeram-na ainda mais sublime: o Padre Kolbe, muitos mártires de ontem e de hoje, Gandhi...; e tantos outros desconhecidos dos noticiários que com a sua humilde mansidão todos os dias tornam melhor a terra de todos nós.
A mansidão é a resposta virtuosa ao vício da ira que, como em nenhum outro tempo, domina hoje o espaço público, tornando mau o ambiente nos nossos locais de trabalho, nas reuniões de trabalho, de condomínio, no trânsito urbano, nas reuniões políticas. Se não existissem os mansos, a nossa ira produziria muitas mais guerras e feridas que tornariam as cidades impossíveis de habitar: seriam dominadas pela reciprocidade de Lameque (1); haveria assassínios por causa de um risco na parede feito por crianças.
A mansidão de poucos cura e acode à ira de muitos. Bastaria isto para mostrar como é preciosa e indispensável a existência dos mansos que são a primeira minoria profética que eleva o mundo, o fermento principal, o sal primário da terra. São eles os verdadeiros não-violentos porque, com a sua fortaleza, impedem que a violência domine o mundo e os nossos mundos. Além disso, a mansidão dá vida – e por vezes com alegria – aos doentes
crónicos; ajuda a envelhecer e morrer bem; dá resistência em longas e duras provas da vida sem ira ou azedume para com os outros e consigo mesmo, mas deixando que docilmente lhes acariciem a cabeça: são os mansos que “ad manum venire sueti”.
Quando em certos momentos, muitas vezes de repente e sem aviso prévio, chegam à nossa vida desventura e grande dor,estar treinado na mansidão permite suportar pesados fardos. É a mansidão de Job que, sentado sobre um monte de cinza, não segue o conselho da mulher ("amaldiçoa Deus e depois morre"); continua a viver, a resistir, a lutar docilmente. Nestas decisivas fases da vida a mansidão transforma-se em exercício doloroso e feliz de mergulhar na própria interioridade, para aí descobrir, escondidos, recursos e valores mais profundos dos que à nossa volta estão vacilando ou desapareceram.
E aprende-se a dizer “ámen”. Para dizer bem, sem ira nem maldade, “ámen” nos momentos mais importantes da vida – especialmente no último – é necessária a virtude-bem-aventurança da mansidão. Disse-me certo dia um amigo e manso mestre: "Se a vida te põe de joelhos uma vez, levanta-te; se te voltar a por de joelhos uma segunda vez, levanta-te de novo. Mas se te põe de joelhos uma terceira vez, então, para ti, talvez tenha chegado a altura para rezar" (Aldo Stedile). Também o perdão verdadeiro, que não é apenas esquecermos para nos sentirmos melhor, que não é tomar para si (for-get) mas dar (for-give), requer a mansidão. O manso é capaz de perdoar porque perdoando permanece dócil, pronto a apertar de novo a mão que o magoou.
Na tradição hebraico-cristã, a mansidão está associada à herança da terra. Mas de que terra? A primeira que os mansos herdam é a “terra prometida”, a terra do advento de um reino de paz e justiça desejada por todos os homens e civilizações de ontem, hoje e amanhã. Herdam antes de mais o dom de olhos capazes de “ver” essa Terra, capazes por isso de desejá-la e de amá-la. Não se começa – nem se continua – nenhuma viagem, nem se atravessa um deserto sem antes se conseguir entrever, e antes ainda, desejar a realização de uma promessa. Se não tivéssemos diante de nós uma terra prometida, nova e melhor, como seria possível lutar, mansamente, para tornar melhor a nossa terra ferida?
A herança da terra, porém, é também a que os nossos filhos receberão amanhã se nós hoje formos mansos. Há, de facto, uma mansidão no uso da terra, dos seus recursos, dos seus bens, da água, do ar, uma mansidão de que temos extrema necessidade. Cada vez que somos violentos com a terra e com os seus recursos diminui o valor da sua herança. A mansidão está diretamente ligada à proteção: o manso Abel e o não-protetor Caim estão perante nós como opções radicalmente alternativas e sempre possíveis. O manso protege o oikos (a casa) e por isso faz uma oikonomia mansa. Uma economia mansa utiliza os recursos sabendo que os herdou e que os deve deixar em herança. Se fôssemos mansos outras seriam as contas a fazer para avaliar o nosso crescimento e o nosso bem-estar. Os algoritmos dariam um peso muito maior ao consumo de recursos não renováveis e a todos os que encontrámos na terra e que deveremos deixar em herança. O “destino universal dos bens”, princípio base da doutrina do Bem comum, diz respeito sem dúvida ao espaço mas interpela, sobretudo, o tempo. Se assim fizéssemos, a preocupação pelo “depois de nós” tornar-se-ia uma cultura geral que nos conduziria a usar todos os bens comuns com o mesmo cuidado com que se usa o que é dos filhos.
Pelo contrário, o capitalismo individualista – que precisamente nestes tempos de “crise” se está a propagar sem oposição – é demasiadas vezes violento no uso dos recursos, trocando a qualidade do ambiente, ar e água de amanhã, o futuro de povos inteiros (penso especialmente na África) por alguns graus de temperatura a mais ou a menos nas casas do norte do mundo; e – com avidez – continua a comer terra, ambiente, pobres; não inclui as periferias; devora-as. Além disso, mansidão económica significaria, sobretudo para as grandes empresas, reduzir a agressiva presença da publicidade a toda a hora, deixar de explorar os recém-formados que nesta fase de escassez grave de trabalho estão muito expostos a chantagem, reduzir a velocidade e a agressividade da finança especulativa, mitigar a linguagem arrogante e vulgar dos poderosos, dobrar e amansar a mão de muitos bancos para com empresários e famílias ou a da administração pública para com quem sempre pagou impostos e agora, caído em desgraça, já o não consegue fazer.
Com a sua linguagem típica – diversa mas profundamente ligada à das outras virtudes e bem-aventuranças – a mansidão diz-nos, então, uma verdade antiga que se coloca no centro da vida em comum. Quando olhamos para o espetáculo da vida que todos os dias se desenrola diante dos nossos olhos, a primeira impressão forte é que são os espertos, os violentos e os maus que prevalecem e têm sucesso. Os mansos parecem perdedores, marginalizados e esmagados pelos golpes dos poderosos, dos violentos; uma iniquidade que provocou também o desiludido grito de dor de Norberto Bobbio: "Ai dos mansos: não será deles o reino da terra" (“Elogio da mansidão”). As histórias e a verdade da mansidão ordinária e extraordinária, pelo contrário, dizem que esta primeira impressão, embora real, não é necessariamente a mais verdadeira.Para quem fizer as contas dos ganhos e custos verdadeiros da vida individual e social, que não se avaliam principalmente em moeda, são frequentemente pessoas e comunidades mansas que registam mais altos proveitos: "Fui jovem e agora sou velho, e nunca vi o justo desamparado, nem os seus filhos a pedir esmola" (salmo 37).
Se no futuro tivermos uma economia melhor do que a atual, na qual os jovens possam trabalhar e não mais "mendigar o pão", não será graças às promessas dos poderosos, mas pela ação forte, silenciosa e tenaz de muitos mansos. Bem-aventurados os mansos, porque hão-de ter a terra por herança.
Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 13/01/2014. Tradução: António Bacelar