Deus e o diabo moram nos detalhes. E é verdade. São pequenos olhares e meias palavras, detalhes, que fazem com que um casal se apaixone. E são pequenas permissões, deslises, que fazem com que o amor se traia e vire qualquer outra coisa menos digna de nota e fadada à indiferença que é pior que o fracasso.
Foi um detalhe, talvez (daqueles quase imperceptíveis, justamente porque parecem óbvios demais, despretensiosos) em um dos últimos capítulos de The Last of Us, que me catapultou de volta para o mundo em que vivemos. Tendo mergulhado até a cabeça na trama muito bem construída de um mundo que há vinte anos tenta sobreviver e resistir a uma pandemia de fungos que transformam os seres humanos em zumbis, foi fácil esquecer que tudo o que eu via não era uma leitura possível da realidade que experimento.
Vejamos: o prólogo da série da HBO Max traz um programa do meio do século passado, em preto e branco, em que especialistas discutem quais seriam, provavelmente, as piores tragédias que poderiam acontecer no futuro. Um deles levanta a hipótese de uma pandemia viral que seria responsável pela morte de milhares de pessoas − o que de fato aconteceu em 2020, e se você está lendo esse texto é porque sobreviveu. Outro entrevistado, no entanto, fala sobre a possibilidade um pouco mais sofisticada, mas nem por isso mirabolante: uma epidemia de fungos que controlam o sistema nervoso humano. Quando questionado sobre como seria possível, visto que tais espécies não sobrevivem à temperatura do nosso corpo, o pesquisador diz algo como: “mutações acontecem, suponha que a temperatura do planeta suba...”
Fungos desse tipo existem, mas, até agora, controlam insetos, como formigas. Elas viram marionetes responsáveis pela difusão do parasita que controla todos os seus movimentos. Formigas, desde as fábulas infantis, são sinônimo de trabalho árduo, ordem, rotinas e esforços sem fim, produtividade mil, marcha em uniformidade. Não estamos nós vivendo como formigas?
Em um determinado ponto da série, os dois protagonistas entram nas ruínas de uma universidade. Ele tem quase 50 anos e já sobreviveu a muita coisa desde o dia 1; coleciona uma série de lutos: de pessoas e de sonhos. Ela tem 14 anos, e também coleciona decepções, mas nasceu imune ao fungo, e, como se isso não bastasse, tem a capacidade de se admirar com o mundo, de encontrar beleza nas coisas, mas sem breguices: apenas aquelas típicas de qualquer pessoa aos 14 anos de idade que se permite viver. A diferença é que faz isso durante um apocalipse zumbi.
Curiosa, vendo os prédios da cidade universitária norte-americana, pergunta ao homem o que as pessoas faziam ali. “Eles moravam e estudavam no mesmo lugar”. Ela acha o máximo, e ele completa: “Mas eles só iam pra festas e tentavam entender o que fazer com a vida”. Com uma ironia dilacerante, a menina repete: “Tentavam entender o que fazer com a vida... hum”.
É um detalhe, eu sei. Mas por trás tem um contraste cruel. Nesse ponto da série, já vimos tudo de bom e de ruim que o ser humano é capaz de fazer em situações extremas. De seitas religiosas asfixiantes, revoltas contra um sistema opressor que é dez vezes pior que o próprio sistema; a comunidades muito bem-organizadas democraticamente e pequenos oásis, no fim do mundo e de cerca elétrica, que protegem um forte amor. Da capacidade de se sacrificar por alguém ou por um fiasco de esperança, a um canibalismo disfarçado de bondade.
Tendo visto tudo isso, imaginar que alguém um dia foi capaz de empregar alguns anos “tentando entender o que fazer com a vida” realmente parece narrativa daquelas mesmas fábulas, história pra boi dormir.
Na série, os vilões mais aterrorizantes não são os infectados pelo fungo, mas algumas pessoas “saudáveis” que sobraram. É mais automático traduzir o título da série que foi inspirada em um videogame e coproduzida pelo criador do jogo como “Os que sobraram de nós”. Mas, nesse ponto da trama, na minha mente fez-se um click: talvez “The Last of Us” possa ser, na verdade, “O que sobra de nós”.
O que sobra de nós quando tudo desmorona e as coisas não são mais como eram antigamente? O que sobra quando perdemos tudo o que acreditamos e nesse bolo vai junto até a mínima porcentagem daquilo que nos fazia querer estar vivos? O que sobra quando vemos a injustiça e a maldade de frente e não podemos fazer nada?
Esses dias, em um canal no youtube de crítica de cinema, me deparei com a frase: “todo filme é um problema que virou metáfora”. É óbvio que a série The Last of Us está falando não sobre um hipotético planeta terra destruído por um fungo, mas pelo mundo em que vivemos hoje: tendo aparentemente superado uma pandemia e vivendo como se ela nunca tivesse existido.
É louco pensar que hoje, exatamente agora, tem um grande grupo de pessoas que pode se dar ao luxo de pensar o que fazer com a vida, enquanto existe um número ainda maior de gente que precisa lutar para sobreviver, de uma maneira selvagem mesmo, seja em desastres naturais ou políticos.
“Crise”, “crítica” e “critério” têm o mesmo radical, disse certa vez uma professora minha. Quando as coisas mudam, os velhos critérios para enxergar as coisas (e poder, então, criticá-las positivamente ou não) passam a não funcionar mais. E é aí que chega a crise. As crises são momentos de instabilidade em que é preciso trocar os critérios de ver e de estar no mundo.
Pois bem, tendo aparentemente superado uma pandemia, olhando ao meu redor, percebo que ainda carrego comigo critérios antigos, da década de 90, quando eu nasci, e é aí que a peça de lego não encaixa mais. Dentro de mim parece que vivem dois personagens: o homem de 50 anos calejado pela vida, apático, e a adolescente curiosa que é capaz de esquecer o próprio luto vendo uma girafa que fugiu do zoológico. Existe a desilusão e o fio de esperança.
E eu torço para encontrar o critério certo, ou, pelo menos, que sobre de mim a melhor parte.