A 114 KM da cidade fora do continente africano que tem a maior população de afrodescendentes do mundo, onde existem 365 igrejas católicas (uma para cada dia no ano) e onde a cultura é fortemente influenciada pelo sincretismo e as religiões de matriz africana, está a diocese de Dom Zanoni Demettino Castro, em Feira de Santana, na Bahia. Ordenado bispo pelo papa Bento XVI quando tinha 45 anos, ele, que também é negro, é a referência nacional da Pastoral Afro-Brasileira junto à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Aos 60 anos de idade e no mês da consciência negra, a pedido da Cidade Nova, dom Zanoni refletiu sobre o seu percurso pessoal de fé, o papel da Pastoral Afro-Brasileira, os desafios da CNBB e a questão dos negros no Brasil.
Eu participava da igreja quando era adolescente, mas nunca pensei que seguiria uma vocação religiosa ou sacerdotal. Fui para Brasília, ainda no final da adolescência, e passei a estudar engenharia. Mas em um determinado momento, eu me deparei com a pergunta: o que vai me realizar como pessoa, como gente? Nesse período, me marcou profundamente o testemunho da Igreja, o modo aberto do meu pároco e o seu diálogo com a sociedade... o seu compromisso com os pobres. Aquela realidade que tinha se distanciado de mim por um tempo passou a ocupar totalmente a minha vida e influenciou a minha escolha. Em um momento decisivo, eu optei por ser padre. Mas não qualquer padre: um sacerdote comprometido com os pobres.
Eu sou padre há 35 anos. Fui ordenado no dia 28 de dezembro de 1986 na diocese de Vitória da Conquista, cidade onde eu nasci, no sul da Bahia. Na caminhada, fui representante dos presbíteros em nível diocesano, depois regional. Participei da Comissão Nacional dos Presbíteros e, nessa condição, fiz parte da 5ª Conferência de Aparecida como presbítero convidado. Foi depois dali que fui chamado a ser bispo na diocese de São Matheus, no Espírito Santo, em 2007. Mas é no caminhar, no decorrer do tempo, que nós vamos tomando consciência dessa missão. Não é algo de momento. Passa por perceber que a condição de bispo te pede um olhar para uma realidade mais ampla, mais global. É esse olhar que permite a nós, bispos, enquanto sucessores dos apóstolos, confirmar os irmãos na fé. E eu compreendo essa minha missão dentro de uma igreja que caminha tendo como fundamento e base o Concílio Vaticano II.
Nós compreendemos a Pastoral Afro-Brasileira no sentido mais amplo do que é a evangelização. “Pastoral” vem de “pastor”, que é Jesus, aquele que dá a vida, que veio para que “todos tenham vida e a tenham e abundância”. A nossa missão é a missão de Jesus Cristo: anunciar as suas propostas, o seu reino. O papa Paulo VI, que hoje é santo, nos ensinou que evangelizar não é passar um verniz superficial nas coisas, é penetrar fundo nas raízes, na vida, na cultura e na compreensão do povo. Por isso, nós entendemos a Pastoral Afro como um meio para dar uma “boa notícia” para a maioria do povo brasileiro – 56% da população brasileira se declara afrodescendente. Eu estou em uma região da Bahia onde essa porcentagem, inclusive, é muito maior. Recentemente, em Salvador, aconteceu o congresso nacional das comunidades negras católicas. O lugar é bastante sugestivo: a cidade de Salvador tem a maior população negra fora da África. Vendo as raízes, a cultura, a culinária, o modo de ser e de viver que marca a nossa história, a pergunta do evangelizador é: como ser fiel à mensagem de Jesus e penetrar profundamente nisso tudo? Não podemos fingir que não houve 300 anos de escravidão, esse crime que até hoje lesa a sociedade e ainda não foi suficientemente reparado. Isso ainda gera muita desigualdade, há um racismo estrutural no Brasil. E isso não é só um sentimento pessoal, é, de fato, algo que ainda não foi solucionado.
Como nos ensina o Documento de Aparecida, o afrodescendente não é só objeto de evangelização, mas é protagonista. É chamado a ser protagonista de uma nova sociedade. Nessa Igreja, todos nós somos protagonistas, sujeitos eclesiais. A Conferência de Aparecida ensina a “descolonizar as mentes”, o pensamento, recuperar a história. Acho que esse é o meu grande desafio.
O papa São João XXIII sentiu um cheiro de mofo na Igreja, ainda na década de 1960. Ele sentiu que a Igreja estava distante do mundo, sem dialogar com as diversidades, com as outras religiões. O Movimento dos Focolares inclusive tem isso muito forte: o desejo de dialogar com o outro, de relacionar-se com as pessoas e entrar em comunhão com o diferente. A Igreja estava atrasada na questão ecumênica, muito fechada no movimento bíblico e no movimento litúrgico. O Concílio representou esse grande momento de falar, de abrir-se ao mundo. Esse movimento de diálogo, de abertura e de comunhão tem no papa Francisco uma manifestação bonita. Francisco não quer mudar a Igreja, mas quer que sejamos fiéis ao Espírito Santo, que nos impulsiona a uma realidade nova, a dialogar com o mundo e falar de Deus de um modo significativo. Mas ainda existe, até hoje, um grupo que rejeitou o Concílio, que não quer dialogar com a modernidade, que quer ficar fechado para dentro de si mesmo, como um museu. Esse grupo rejeita a ação evangelizadora da Igreja, diminui e critica de maneira destrutiva a conferências episcopais, como a CNBB, e não aceita o papa Francisco como vínculo de comunhão.
Existe uma tentativa de transformar o papa Francisco em um inimigo. Justamente esse papa, que tem sido uma referência segura, que nos propõe uma economia nova, a Economia de Francisco, cujo centro é a pessoa humana, não o ídolo do dinheiro e do mercado. Quando estivemos no Vaticano, eu e os demais bispos da Bahia e de Sergipe, agradecemos ao Papa pela Evangelii Gaudium, essa encíclica tão bonita sobre a alegria de evangelizar. O Papa respondeu que o que ele estava dizendo ali não era novidade, Paulo VI já dizia, a Conferência de Aparecida também. É uma síntese dessa caminhada. O nosso papel como bispos é este: confirmar na fé. Nem tudo o que se diz católico é fiel ao magistério e aos ensinamentos e amadurecimentos da Igreja. Fala-se muito em doutrina social da Igreja, mas as pessoas não conhecem o que é isso. São mais de 100 anos de encíclicas de diversos papas, de ensinamentos que são valiosos para a sociedade de hoje e para a política que temos. Fala-se muito em “magistério”, desconsiderando todos esses ensinamentos e deixando de lado, sobretudo, o magistério do papa Francisco.
A Igreja não é um partido, é a comunidade daqueles que acreditam e seguem Jesus. Aos poucos, a Igreja vai crescendo no seu conhecimento da Verdade, da Justiça, sobre como atuar no momento presente, aprende a dialogar com a filosofia, com os avanços, com as descobertas e as lutas da nossa gente. A preocupação com a pessoa humana é parte intrínseca da ação evangelizadora. Se nós tivermos presente os encontros de Medellín, de Puebla e de Aparecida, veremos que não há dicotomia naquilo que o mundo vive, nos problemas dos homens. A Igreja tem consciência do problema. O papa São João Paulo II, ao vir à América, pediu perdão pelos anos da escravidão. Já com dom Helder [Câmara], aqui no Brasil, houve o apelo para “Maria, Mãe de Cristo e mãe dos homens”, e a Igreja embarcou em cheio na causa do povo negro. Mas sempre houve ações afirmativas na Igreja. Nos últimos debates eleitorais, ficou claro como há o desconhecimento total da representatividade das cotas raciais, por exemplo. É uma maneira de sanar os 300 anos de escravidão. Por isso que é preciso ter presente a concretude da realidade do povo brasileiro. Às vezes, parece que nós discutimos vários assuntos nos grupos de Igreja, mas de uma forma alheia à realidade daquilo que a nossa gente vive.
Dom Zanoni Demettino Castro - Bispo de Feira de Santana (BA) e referência da CNBB para a Pastoral Afro-Brasileira