“Comecei a fazer uso de drogas aos 18 anos com um grupo de amigos, num carnaval, em Salvador. Decidi experimentar cocaína. Eu carregava comigo um trauma, um momento de dor pelo qual passei aos sete anos, devido a um abuso sexual que sofri. Isso mexeu muito com a minha vida, porque eu tinha medo das pessoas, desconfiava delas, era uma pessoa presa”, conta Alexandre Falcão, recuperando da Fazenda da Esperança. Dramas como o de Alexandre são comuns, ainda que nem sempre venham a público. E uma das razões para isso está no fato de que a própria vítima de abuso sexual tende a esconder o caso por se sentir culpada. Segundo dados do Ministério da Saúde referentes ao período de 2011 a 2017, 37% das crianças e 38% dos adolescentes são vítimas de abuso sexual em ambiente familiar.
O tema não é novo, mas tem ganhado espaço no noticiário recentemente por conta das denúncias ocorridas no âmbito da hierarquia da Igreja Católica, especialmente em países como Estados Unidos e Irlanda. Segundo o padre e doutor em teologia moral Celito Moro, esse tipo de escândalo ganha ainda mais projeção quando ocorrido da Igreja porque os agressores se aproveitam da condição de serem referência para a comunidade ao assumirem uma vocação no ministério religioso, quando deveriam fazer o bem, especialmente para os mais vulneráveis. “Como afirmou o papa Francisco, isso é algo que nos envergonha e que não deveria acontecer”, diz o sacerdote.
Moro considera, no entanto, que o papa se mostra corajoso e coerente ao enfrentar esse tipo de problema, embora reconheça que nem todos os bispos tenham a mesma postura, uma vez que silenciam quando o assunto é pedofilia ou até mesmo protegem padres acusados de abuso. “O papa Francisco convida a toda Igreja – e especialmente quem nela trabalha com menores – a assumir o compromisso da tutela e do cuidado de crianças e de outras pessoas em condição de vulnerabilidade”, afirma Moro. “Mais que isso, o papa propõe que seja feita uma revisão de como a Igreja tem tratado a questão da afetividade e da sexualidade, a começar do seu clero”, completa o sacerdote.
Recentemente, a Igreja publicou o documento O cuidado Pastoral das Vítimas de Abuso Sexual, elaborado em resposta ao pedido da Congregação para a Doutrina da Fé a todas as conferências episcopais da Igreja no mundo. O texto traz diretrizes sobre como enfrentar a questão do abuso sexual, de poder e de consciência que acontece no seio da Igreja.
Membro da Comissão Pontifícia para a Tutela do Menor, Nelson Giovanelli Rosendo dos Santos explica que “a iniciativa faz parte de um caminho que a Igreja, desde João Paulo 2º, realiza no sentido de fazer com que, definitivamente, não exista mais esse tipo de problema no seu interior ou, pelo menos, tente evitá-lo a todo custo”. Além do cuidado pastoral com as vítimas, o documento traz orientações sobre como enfrentar esse problema do ponto de vista jurídico, pastoral e canônico.
Um dos fundadores da Fazenda da Esperança, Nelson acompanha de perto o problema do abuso sexual de maneira geral, uma vez que muitos recuperandos de dependência química assistidos pela entidade foram vítimas de violência sexual na infância ou na adolescência. Ele corrobora a visão do padre Celito Moro de que o papa Francisco deve ser intransigente contra esse tipo de crime, que precisa ser denunciado. Além disso, o pontífice coloca ênfase no cuidado para com as vítimas que “devem ser escutadas, acompanhadas, tanto do ponto de vista psicológico, como espiritual e pastoral, assim é preciso tomar medidas em relação aos agressores”, diz Nelson. Seminários, cursos e workshops de formação também deveriam ser feitos, segundo o papa, para membros do clero, candidatos ao sacerdócio, lideranças leigas e fiéis em geral.
“Eu parto do princípio de que onde há sombras, há também luz”, diz Nelson dos Santos sobre o trabalho de combate ao problema dos abusos na Igreja. A exemplo do que acontece em muitas instituições ao redor do mundo, a própria Fazenda da Esperança é uma referência no acompanhamento de vítimas e de agressores. “Sem que nós nos déssemos conta, com o método terapêutico da Fazenda, baseado fundamentalmente na experiência da vivência do Evangelho, com especial foco no amor e no perdão, verificamos experiências extraordinárias de acompanhamento de vítimas, que inclui perdão, reconciliação e até cicatrização das feridas”, afirma Nelson. Segundo ele, entre 40% e 50% daqueles que chegam à Fazenda da Esperança para passar pelo processo de recuperação tiveram, na juventude, alguma experiência ligada a abuso sexual ou de poder que levaram à dependência química.
A pedofilia em si, no entanto, não é crime. “Do ponto de vista jurídico-penal não existe um crime específico de pedofilia”, diz o procurador de justiça de Sergipe, Carlos Augusto Alcântara Machado. “Contudo, decorrentes de tal transtorno, diversas condutas reprováveis são classificadas como infração penal, tanto pelo Código Penal, como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).” Em outras palavras: uma pessoa pode ser pericialmente considerada pedófila, mas ela só será considerada criminosa a partir do momento em que cometer abuso contra uma criança ou adolescente.
A médica pediatra e advogada Eliane Freire Rodrigues de Souza De Carli explica que a pedofilia é considerada uma “parafilia, isto é, um distúrbio psíquico caracterizado pela preferência ou obsessão por prática sexual com uma criança ou adolescente”. Já o abuso sexual, por sua vez, se caracteriza pelo ato de violência sexual contra crianças e adolescentes e “que pode envolver práticas distintas do contato genital, como carícias, beijos, exposição à pornografia ou a situações sexualizadas”, explica De Carli, que é referência no assunto para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Carlos Machado esclarece que o Código Penal brasileiro tipifica crime de estupro de vulnerável como prática de qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, com “pena de reclusão de oito a 15 anos, podendo chegar a 30 anos, se a conduta resulta em morte”. Nesse caso, acrescenta o procurador da justiça, “a lei classifica como crime não somente a conjunção carnal (o ato sexual propriamente dito), mas qualquer outro ato libidinoso, até mesmo carícias íntimas”. Ele explica que crimes dessa natureza são passíveis de ação penal pública incondicionada, isto é, não dependem da vontade das vítimas ou de seus pais ou responsáveis.
O procurador da justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo e um dos colaboradores na redação do ECA, Munir Cury, afirma que o cidadão que tomar conhecimento desse tipo de abuso deve comunicá-lo ao Conselho Tutelar da comarca em que se encontra. Esse, por sua vez, comunica o procurador da Justiça. “Com indícios veementes, é instaurado um inquérito policial, que é inquisitorial (não tem participação do advogado de defesa), mas colhe provas documentais ou indiciárias que possam caracterizar a existência de um abuso”, explica Cury. Ele afirma também que o cidadão que se omite em denunciar casos desse tipo também pratica crime. Munir Cury ressalta ainda que o respeito aos direitos fundamentais da criança cabe (nessa ordem) à família, à escola, ao Conselho Tutelar, ao promotor da Justiça e, finalmente, ao juiz. Cury reconhece, no entanto, fragilidades na condição em que atuam todos esses envolvidos na proteção à infância e ao adolescente, hoje no Brasil.
Por sua vez, a professora de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Josiane Rose Petry Veronese, faz um balanço sobre como o Brasil trata o problema da pedofilia e dos abusos decorrentes dela. “No que se refere à exploração sexual infanto-juvenil, o Brasil tem se situado como extremamente negligente, o que caracteriza um desrespeito à Constituição Federal, um descaso com a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e para com os direitos proclamados e regulamentados no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990”, denuncia.
Veronese considera que se trata, “em síntese, de uma profunda negação dos direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo tendo-se em conta que esta negativa de cidadania atinge justamente aqueles que são merecedores de proteção especial e integral, por estarem num processo de desenvolvimento”. Para a professora, pesquisadora e autora de várias obras nessa área, esse quadro de descaso parte não só do poder público e da sociedade em geral, como da família em particular.
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O psicólogo Allan Magalhães compartilha da opinião da professora Veronese. Segundo ele, as crianças sofrem diversos outros tipos de violência que incluem, além do abuso sexual, o abuso moral (como o bulling, por exemplo), a pressão, a chantagem e outros. Esse sofrimento elevado se manifesta, por vezes, na forma de automutilação, na depressão e no suicídio. Isso não tem relação apenas com abusos, mas diz respeito às próprias condições de vida que a sociedade impõe a crianças e adolescentes, argumenta Magalhães. “A criança está muito abandonada hoje em dia. Às vezes, está cercada de bens materiais, mas lhe falta relacionamento”, conclui o psicólogo (confira artigo na seção Psicologia desta edição).
A proteção à infância é ainda mais vital quando se leva em conta que as consequências do abuso têm repercussões para toda a vida da pessoa. “Não é raro que alguém que foi abusado se torne um abusador”, afirma Magalhães. Ele explica que o pedófilo está sujeito ao vício, mas pode controlá-lo, primeiramente, se conseguir realizar um resgate da estrutura moral que o convença a se afastar da prática de abuso sexual. Depois, deve usar estratégias que o previnam de situações de risco. “Como dizem os Alcóolicos Anônimos, é uma doença perene”, explica o psicólogo.
Quanto à vítima da pedofilia, o psicólogo reforça que, com ajuda e orientação adequadas, ela pode ser “conduzida de volta a uma experiência positiva”. De fato, a experiência de Alexandre Falcão parece confirmar esse fato. “Na Fazenda, tive coragem de abrir o meu coração e falar do abuso que havia sofrido”, conta. “Foi essa dor que me levou a usar a droga e tornou-me um homem que não conseguia perdoar ninguém, nem amar ninguém. Depois que tive coragem de me abrir e falar tudo, experimentei uma leveza e uma sensação de paz interior que eu nunca tinha experimentado na vida. Encontrei o amor misericordioso de Deus que foi me curando. Fui encontrando o sentido da vida”, afirma o recuperando da Fazenda da Esperança.
Para a pedagoga Soraia Giovani, é preciso pensar numa “rede de proteção às crianças e adolescentes”. Ela argumenta que os adolescentes em particular “vivem um período de natural e necessário distanciamento da família para confrontar se aquilo que aprenderam com os familiares é verdadeiro”. Isso os expõe ainda mais a certos perigos, razão pela qual, esclarece Giovani, esses adolescentes precisam contar com adultos em quem depositem confiança e que lhes sirvam de referência. “Esses adultos podem ser aqueles a lhes chamar a atenção para o perigo de certas experiências e riscos que possam estar correndo”, explica.
Nesse processo, os professores podem ser importantes aliados. Primeiramente, porque se tornam esses adultos em quem – fora de casa – os menores podem confiar. “Na convivência, o professor é capaz de perceber quando a criança muda de comportamento; quando está triste, por exemplo”, diz a especialista. Ela alerta para o fato de que o abusador costuma envolver a criança (inclusive com presentes), a ponto de o menor acreditar que, se disser algo contra o agressor, estará traindo a sua confiança. Antes, no entanto, de a escola encaminhar qualquer denúncia ao Conselho Tutelar, é adequado chamar a família e orientar a observar e escutar a criança. Soraia Giovani afirma também que instituições de ensino e a Igreja devem tomar certos cuidados no trato das crianças como, por exemplo, nunca permitir que apenas um adulto esteja com uma criança ou com um grupo de crianças.
Atualmente, existem materiais impressos e audiovisuais didáticos que podem orientar os pais a iniciarem um diálogo com seus filhos menores sobre questões de sexualidade, prevenindo-os de certos riscos. Mas Giovani faz dois alertas: “Muitas vezes, a criança ainda não despertou para uma situação que diz respeito à sexualidade e antecipar algo que não corresponde à sua curiosidade pode ser arriscado”. Além disso, as escolas precisam ter um projeto elaborado de orientação sexual e contar com o consentimento dos pais para aplicá-lo. Sem isso, “mesmo diante de certas perguntas naturais dos alunos, a escola deve questionar a criança se já tratou o assunto em casa”, recomenda Giovani.
A Editora Cidade Nova lançou o livro Proteger a infância, obra de autoria de Carina Rosas e Viviana Carlevaris Colonnetti sobre o cuidado com crianças e adolescentes ante diferentes tipos de violência. Originalmente publicado na Argentina, a edição brasileira contou com a revisão técnica de vários especialistas, de modo a adequá-lo à nossa realidade cultural. O livro traz diferentes abordagens sobre o assunto (psicologia, medicina, direito, teologia moral etc.) e propõe dinâmicas de diálogo para o leitor poder refletir melhor o tema. No trecho a seguir, apresentamos alguns sinais que identificam crianças e adolescentes vítimas de algumas dessas violências:
“Alguns sinais para a identificação das vítimas, são apontados pela respeitada ONG Childhood Brasil, entre eles: 1) mudanças no padrão de comportamento, cuja alteração costuma ocorrer de maneira imediata e inesperada; 2) proximidades excessivas, pois o abusador muitas vezes manipula emocionalmente a criança, que não percebe estar sendo vítima e, com isso, costuma ganhar a confiança dela, fazendo com que ela se cale; 3) silêncio predominante, e, para obtê-lo, o abusador costuma fazer ameaças de violência física e psicológica, além de chantagens, sendo frequente a utilização de presentes, dinheiro ou outro tipo de material para construir uma relação amigável com a vítima; 4) mudanças de hábito súbitas, destacando-se o sono, a falta de concentração, aparência descuidada e outras; 5) comportamentos sexuais, tais como brincadeiras, palavras ou desenhos que se referem às partes íntimas, podem indicar uma situação de abuso; 6) traumatismos físicos são os vestígios mais óbvios da violência, destacando-se marcas de agressão, doenças sexualmente transmissíveis e gravidez; 7) enfermidades psicossomáticas, sem aparência clínica, tais como dor de cabeça, erupções na pele, vômitos, dificuldades digestivas, podem constituir um reflexo psicológico e emocional; 8) frequência escolar, como a queda nessa frequência ou o baixo rendimento causado por dificuldade de concentração e aprendizagem, a pouca participação nas atividades escolares e a tendência ao isolamento social.”