CERCA de 47 milhões de brasileiros têm plano de saúde. Têm porque querem fugir das filas intermináveis do Sistema Único de Saúde (SUS), as quais muitas vezes fazem o paciente esperar até meses por uma consulta ou um exame. Nestes tempos de pandemia de Covid-19, quando muitos necessitados de assistência ficaram esperando vaga nos hospitais públicos, fica mais lógica essa escolha. No entanto, mudando tal lógica, médicos e estudiosos do tema afirmam que o coronavírus alerta que, mais do que nunca, o SUS é essencial e benéfico. “Esta pandemia veio nos dizer que, sem sistema de saúde público, ninguém sai ileso”, afirma a médica Margarete Barbosa Daldegan, que trabalha em um hospital de referência para atendimento às vítimas de Covid-19 em Brasília. “O complicado é que as pessoas não sabem como o SUS funciona.”
Bem, o nosso Sistema Único de Saúde funciona a partir da Constituição de 1988. O artigo 196 diz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Por isso, a primeira característica do SUS é sua universalidade. Todos, sem exceção, podem usar os seus serviços. Mais que um sistema de saúde, o SUS é “uma política de inclusão social”, aponta o professor da Faculdade de Medicina de Marília (SP), Gilson Caleman. Ele nasceu inspirado no sistema público britânico de saúde, o NHS, mas teve de ser adaptado para atender a uma população muito maior. E se tornou o único sistema de saúde pública universal e gratuito existente em um país com mais de 200 milhões de habitantes.
O modelo oposto ao nosso pode ser encontrado em outro grande país, os EUA, onde o cidadão, na grande maioria dos casos, só tem assistência médica se contratar um seguro-saúde. “Esse é o Estado que não vê a saúde como um direito e prioriza o serviço individual”, explica Caleman, para ironizar: “Os EUA têm a melhor medicina e a pior assistência médica do mundo”. Isso ajuda a explicar por que esse país é o líder mundial disparado em número de casos e de mortes por Covid-19.
Os mais velhos lembram que, antes do SUS, entre as décadas de 1960 e 1980, o Brasil adotava um terceiro modelo de assistência à saúde. Eram os tempos do INPS e, depois, do INAMPS, em que os recursos da saúde ficavam concentrados nessas instituições. Como elas cuidavam da previdência social (daí o “PS” das siglas), só tinha direito a atendimento quem contribuía para o sistema. “As pessoas traziam a carteira de trabalho para ser atendidas”, recorda o médico sanitarista Paulo Celso Fontão. “Quem não tinha carteira era atendido como indigente, como se recebesse um favor ou uma caridade”. Ou recorria às instituições filantrópicas, como as santas casas.
Caleman explica que, nesse modelo, a saúde é “um benefício, não um direito”, e a prioridade também é a assistência médica individual. Como esse sistema não se sustentava financeiramente, Caleman lembra que foi nessa época, com o estímulo do governo, que começaram a proliferar no Brasil os planos de saúde, que eram muitas vezes vinculados a empresas, para atender seus funcionários. Então, esse já era o recurso daqueles que tinham posses.
Ao lado da universalidade, outro princípio que alimenta o SUS, e que muitas vezes fica “escondido”, é a integralidade. Antes de combater a doença, o sistema pretende promover a saúde e a qualidade de vida. Por isso, o SUS não se preocupa somente com a construção de hospitais. Ele trata desde a avaliação da pressão arterial até o transplante de órgãos, sem esquecer do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e muito mais. “A população não sabe que, atrás dos médicos, tem milhares de farmacêuticos, enfermeiros, biólogos e biomédicos”, alerta Margarete. Com o SUS, vieram os agentes comunitários de saúde, as ações de atenção primária à saúde e o programa Saúde da Família, tudo isso alavancado por um grande investimento, que levou a um grande crescimento da cobertura. Essas iniciativas ajudaram a evitar doenças e reduzir o número de internações em hospitais. E contribuíram também para a redução drástica da mortalidade infantil no país: entre 1990 e 2017 a taxa caiu de 47,1 para 13,4 mortos para cada mil nascidos vivos, uma queda considerada “histórica” pelo Unicef.
Principalmente neste período de pandemia, é importante também a forma como o SUS se estrutura. O governo federal é seu principal financiador e formula políticas nacionais de saúde, mas não realiza (ou não deveria realizar) as ações. Estados e municípios têm autonomia para realizar os projetos propostos pelo Ministério da Saúde e fazer suas próprias políticas, desde que não estejam em desacordo com as normas do governo federal. “Essa composição tripartite traz algumas contradições” – analisa o pesquisador da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) Daniel Soranz – “mas, de maneira geral, traz muitos benefícios, porque protege a área científica de uma interferência política única”. Soranz usa um exemplo do passado e outro do presente para mostrar como a estrutura funciona. “O SUS tem uma capacidade acumulada no enfrentamento de epidemias, como zika e dengue”, destaca ele. “Quando houve a epidemia de H1N1, em 2009, o Ministério da Saúde utilizou seu papel de regulador, comprou e distribuiu o Tamiflu, o medicamento estratégico para combater a gripe”, recorda ele. “Isso gerou uma economia imensa”. Já no presente caso da Covid-19, isso não aconteceu. Soranz afirma que, “por n motivos”, a cadeia de decisões do governo federal foi interrompida e os estados e municípios tiveram de comprar os insumos para combater a doença separadamente. “Mesmo com a ausência de um componente, o processo do sistema não é interrompido”, observa ele. “Mas é óbvio que, se o Ministério da Saúde tivesse centralizado a compra dos testes diagnósticos ou dos equipamentos de proteção, a gente não teria essa competição no mercado e os preços seriam muito menores”.
O problema é que nada disso resolve o que a população encontra em boa parte das unidades de pronto atendimento e dos hospitais do SUS: as filas e a dificuldade para ser atendida. Para explicar isso, uma resposta é unânime: falta dinheiro. Dados de 2015 do Institute for Health Metrics and Evaluation, uma instituição estadunidense que levanta estatísticas do setor, mostram que, considerando o número de habitantes, o Brasil investe menos na saúde do que seus vizinhos, e muito menos do que fazem países da Europa e da América do Norte. Só 44% dos valores investidos em saúde vêm do Estado (veja os gráficos abaixo). “Até os EUA, que se baseiam no serviço privado, investem mais que o Brasil”, aponta Gilson Caleman.
A situação piorou com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 95/16, chamada de “teto de gastos”, que limitou as despesas do governo por vinte anos. Graças a ela, o Conselho Nacional de Saúde afirma que, desde 2018, o SUS perdeu R$ 22,5 bilhões. Por isso, o presidente da entidade, Fernando Pigatto, considera que a norma é a “emenda da morte” e observa que estudos recentes apontam que voltou a aumentar o índice de mortalidade infantil no país. “Agora, com a chegada da pandemia, a gente vê os efeitos nefastos”, afirma.
Valeria um capítulo à parte a pressão que a iniciativa privada exerce sobre o SUS. “O Brasil consegue o absurdo de ter o maior sistema público e ser, ao mesmo tempo, o segundo maior mercado de saúde privada do mundo”, resume Gilson Caleman. Parece um contrassenso o fato de que os planos de saúde são chamados de “saúde suplementar”, ou seja, deveriam ser um suplemento ao serviço público, quando, na prática, vêm substituí-lo, e com prejuízo para o sistema. “Muitas vezes, o cliente do serviço privado fura a fila do SUS”, aponta Caleman. Ele se refere aos casos em que o paciente usa os recursos do plano de saúde para fazer, mais rapidamente, consultas e exames que o preparam para uma intervenção mais especializada, que só pode ser feita no hospital público.
Margarete Daldegan também se depara com essa realidade. Especializada em hematologia e hemoterapia, ela trabalha num hospital público, em Brasília, onde dá suporte a outros médicos que tratam de pacientes com doenças que afetam o sangue. Às vezes, a enfermidade é mais complexa, e o paciente do plano de saúde “fica numa dança louca entre quatro ou cinco especialistas, cada um no seu consultório, que não conseguem resolver a vida dele”, resume ela. Então, são os exames e tratamentos oferecidos pelo Ministério da Saúde que vão ajudar o paciente a achar um caminho para a cura.
Mas a médica Margarete ressalta que o problema do SUS não é só dinheiro: é também de pessoal e sua formação. “Nossas universidades têm dificuldade de entender o SUS, porque a medicina no Brasil é muito focada na visão dos EUA, onde o médico se prepara para ter uma clínica”, explica ela. “Então, o médico não quer uma especialidade que lhe dê trabalho, mas uma que lhe permita chegar ao ponto de se considerar bem-sucedido”. Isso impacta também a gestão do sistema. “Para o SUS ficar bom, alguém tem de administrar”, explica. “Para isso, você tem de se dedicar mais e termina tendo de sacrificar o lucro”.
De fato, o combate à pandemia da Covid-19 colocou em evidência, ao lado da falta de recursos do sistema, os problemas de gestão. No Amazonas e no Rio de Janeiro, os secretários estaduais de saúde foram exonerados em meio a investigações de fraude na compra de respiradores. Na capital fluminense, enquanto as autoridades se empenhavam em construir às pressas hospitais de campanha, foram encontrados leitos vazios em hospitais públicos que não eram usados por falta de equipamentos ou de pessoal.
“Esta pandemia alerta para a necessidade de um sistema público de saúde forte e organizado”, insiste Paulo Fontão. “Como sociedade, nós temos que dizer isso claramente para o nosso Congresso” – completa Margarete – “porque é lá que se decide para onde vai o dinheiro”.