“Jamais vou desistir”

Em novo livro biográfico, ex-jogador e comentarista esportivo divide as dores, dificuldades e conquistas do tratamento contra a dependência química

por Web Master   publicado às 00:00 de 18/08/2020, modificado às 15:43 de 18/08/2020

Quinze de julho de 2018. Final da Copa do Mundo da Rússia. O Brasil, diante da TV, se encantava com a nova geração do futebol francês, tão bem expressa na habilidade do garoto Mbappé. O trunfo esportivo, no entanto, por algum momento, ficou em segundo plano naquele dia. O ex-jogador e comentarista da TV Globo, Walter Casagrande Jr, abria seu coração perante aquela maciça audiência para celebrar uma conquista pessoal: havia estado sóbrio durante toda a cobertura do Mundial. Ele conta, em entrevista a seguir, que aquilo veio de maneira espontânea, sem planejar. De fato, pegou a todos de surpresa e teve um efeito sublime: a felicidade efêmera do futebol ganhava um significado mais perene. Não se tratava mais da lógica da competição, de quem é o melhor, mas justamente do rompimento dessas barreiras. O reconhecimento da própria miséria e a luta para se erguer na vida, sozinho e coletivamente. Como não se emocionar?

O terceiro livro de sua série autobiográfica, Travessia (Globo Livros), escrito em parceria com o escritor e jornalista Gilvan Ribeiro, justamente foca nas aflições e no tortuoso caminho de uma recuperação para um dependente químico. Caso de “Casão”, como ele é conhecido, que usou drogas (álcool, maconha, cocaína, heroína) em 37 dos seus 57 anos. Teve quatro overdoses, surtos diversos, visões demoníacas, depressão e o rompimento de elos familiares. Só não morreu, segundo ele, porque Jesus Cristo estava a seu lado. Na conversa com nossa reportagem, ele fala sobre a origem de sua dependência, a volta do futebol na pandemia, fé, religião, Baby do Brasil e democracia.

 

Esse é o terceiro livro dedicado à sua biografia. O que ele tem de diferente dos outros dois?    

Ele é uma continuidade do primeiro, Casagrande e seus Demônios, em que contei a parte mais dramática de minha história: o envolvimento com drogas, o fundo do poço, o acidente, a internação, ficar seis meses isolado. Em 2007, fui internado e, em outubro de 2008, tive alta. E o livro acaba aí. Só que a sociedade tem pouco conhecimento sobre o que é a dependência química, se é uma doença ou não. Muitos acham que não é. Também não se sabe como é a internação e o tratamento. E acham que quando o cara fica internado um ano e tem alta, acabou o problema dele. Mas é ao contrário: quando você tem alta é que entra a parte mais difícil. Começa a ter contato com as coisas, mudar o comportamento, o estilo de vida e começa a entender melhor como é o prazer da vida. Sempre tive acompanhantes terapêuticos, que são as minhas psicólogas. Inicialmente, sempre saía com elas, no teatro, cinema, shows, jantar, tomar café, sempre protegido por elas. Com o passar do tempo, fui evoluindo, sem precisar mais da psicóloga. Fazia terapia em grupo aqui em São Paulo. Eu conto nesse livro como foi essa parte.

 

O quanto é importante para você se abrir dessa maneira, seja no livro ou nas  palestras?

Divulgação

Meu tratamento é terapia em grupo, é uma comunidade terapêutica. Me tratei e me trato falando do meu problema e ouvindo sobre o problema dos outros. Quanto mais você fala do seu problema, quanto mais tem contato com esses sentimentos, ao relembrar aquelas histórias ruins que passou, você se fortalece muito mais. Entende que aquilo é passado, que aquela situação aterrorizante que você passava, não quer ter mais. Que não quer ter mais aquela vida. O importante de falar sempre é para não cair no esquecimento. É normal no ser humano, com o passar do tempo, que as coisas mais difíceis caiam no esquecimento. E a dependência química, cair no esquecimento, é um risco enorme para recaída. Então, conto minha história, vou às palestras, conto como é, como foi. As pessoas são muito interessadas, famílias, adolescentes, estudantes... Inicialmente, quando comecei a fazer esse trabalho no Ceará, no projeto “Ceará sem drogas”, me emocionava muito contando a minha história. Chorava, porque era muito forte para mim. Com o passar do tempo, passei a contar minha história com mais riqueza, mais segurança, sentindo o que vem, mas conseguindo me manter, conseguindo lidar naquele momento com a emoção que sentia. Essa é a intenção de escrever o primeiro livro e essa intenção do terceiro também.

 

Na sua visão, o que explica a dependência química? Qual é a chave? No seu caso, o que você descobriu?

Além de fazer meu tratamento, comecei a adquirir um conhecimento muito forte de comportamento humano. Porque a única saída que tinha para me recuperar era mudando meu comportamento. Trabalhei muito isso com minhas psicólogas e entendi muito sobre o assunto e psicologia. A base do problema é a compulsão, não é a droga. Posso ser compulsivo por chocolate, compras, jogo, sexo... O problema maior é a compulsão. E essa clínica onde me tratei, eles trabalham nessa linha, a compulsão. Isso aí se descobriu há pouco tempo. Porque, antigamente, tentava se trabalhar a droga. Então, o “cara” ficava um ano internado. Não usava droga, não bebia, mas a compulsão não tinha sido tratada. Ele sai da internação exatamente como entrou: compulsivo. E a partir do ponto em que ele sai e vê tudo acontecendo e tem a compulsão dentro de si, volta a usar aquilo que gosta: jogo, chocolate, compras, sapato... Qualquer coisa. Só que a droga tem um adendo: é química, mexe com seu cérebro. Além da compulsão, tem essa química da droga.

"Viver de cara limpa", da Editora Cidade Nova, trata sobre a temática das drogas na juventude. Saiba mais. 

Ainda é um tabu falar sobre drogas, especialmente a dependência do álcool, no meio do futebol?

No futebol, eles ainda acham que é um universo paralelo ao que vivemos. Vivem dentro de uma bolha. Ali não se fala de racismo, mesmo sabendo que tem, não se fala de homofobia, mesmo sabendo que tem, não se fala da dificuldade de se assumir a sexualidade. É um mundo machista pra caramba. Ali não se fala de dependência química, do uso de drogas. O que acontece? De repente aparece um cara pego no doping. No São Paulo FC, o Carneiro, o Rodolfo, goleiro do Fluminense, o Diogo Vitor, dos Santos.... Vai surgindo... Por que que não para de se pegar jogadores no doping com cocaína? Porque não se fala no assunto. Pegou, foi suspenso, punido, saiu e continua o jogo. Ninguém senta para discutir o que acontece no meio do futebol seriamente. A homofobia, o racismo, a dependência química, a violência, a violência contra a mulher. Tivemos recentemente esse caso do Dudu, do Palmeiras. Aquilo acontece, como acontece no mundo todo. No futebol acontece também, mas parece que é um mundo maravilhoso. Só de vez em quando pinga alguma coisa errada. E não é verdade. Acontece coisa errada o tempo todo. Só que o futebol se fecha numa bolha. Enquanto o futebol for tratado como um universo paralelo, os problemas não vão acabar.

Você emocionou o Brasil com aquele depoimento espontâneo na transmissão da final da Copa na Rússia, em que você se orgulha de ter chegado e saído sóbrio da cobertura do Mundial. Como foi aquele momento? (foto abaixo)

Sempre que ouço esse momento ou vejo na televisão, me emociono, escorrem lágrimas. Porque foi muito impactante na minha vida. E foi impactante naturalmente, não foi uma coisa preparada, pensada, nada. Aquilo bateu dentro de mim. Antes de sair para a Copa, fiz uma série no Fantástico junto com o dr. Dráuzio Varella sobre a cocaína. Na última etapa da série, no dia que fui embarcar para a Copa, a reportagem do programa estava ali, um monte de gente em volta, no aeroporto, e me veio na cabeça isso: “Olha, tô indo pra lá, saindo sóbrio daqui de São Paulo, quero permanecer sóbrio na Rússia, e quero voltar para minha casa sóbrio. Esse é meu objetivo.” E fui pra Rússia. Na final, teve aquela grande festa, a França campeã, a volta olímpica, o troféu, aquela explosão... E quando o Galvão passou a palavra para mim, me veio isso na cabeça: “Caramba, bicho. Acabou a Copa do Mundo e estou sóbrio e vou voltar para minha casa sóbrio!” Percebi que aquela Copa do Mundo fui para comentar os jogos pela TV Globo, mas tinha uma Copa do mundo minha, paralela àquela do futebol. E minha Copa do Mundo era essa: chegar sóbrio lá, me manter sóbrio, sem riscos de recaída, não fugindo de nada. Saía para jantar, almoçar, viajar, os caras bebiam vinho e eu ficava de boa. E consegui. Naquele momento eu também me senti campeão do mundo junto com a França. Peguei meu troféu. Mas meu troféu não é físico, está dentro do meu coração, dentro da minha mente. Esse é o troféu mais importante que tenho na minha vida.

 

E sobre religião? Como isso entrou na sua vida?

Tive aquelas visões demoníacas, de dois tipos. A primeira estava muito drogado, foi meio misturado com surto. A segunda não estava me drogando, não estava bebendo, só estava mal emocionalmente. Aí eu tive contato com Cristo. Eu não tinha fé, bicho. Não tinha fé nenhuma. Eu até contestava a história de Cristo. Contestava muito. Depois, quando senti a mão divina em mim, naquele momento, tenho uma fé em Cristo absurda. Eu converso com Ele. Deito na minha cama e converso com Cristo. Tenho Cristo dentro do meu coração ele está do meu lado. Aceito ele e ele me aceitou. Então, cara, tudo para mim é Cristo. Não tenho religião alguma, não vou a templo algum, não sinto necessidade para isso, porque tenho Cristo no meu coração. Pronto. A minha praia é conversar à noite com Cristo, calmo, tranquilo, agradecer muito pela ajuda que me deu naqueles momentos mais terríveis. Agradecer a proteção que ele dá para os meus filhos, meus pais, meus netos. Entendi que sobrevivi com uma missão de passar para frente minha história. Esclarecer a sociedade. Pôr a minha cara para bater. Apanho pra caramba por causa disso e não me importo. Porque a missão que ele me deu é essa e aceitei, “tô” nela, até o fim da minha vida. Não tem desistência. Pode me atacar, me ofender, às vezes fico baqueado, mas me levanto e vou em frente.

 

Emanuel Bomfim