Aprendi a ser amiga de Deus

Gabriela Alves da Silva experimentou o fracasso de uma vida nas drogas. Mas reencontrou Deus e um sentido para a própria existência no amor genuinamente cristão de quem soube acolhê-la e lhe dar uma nova chance. Essa sua experiência – narrada aqui em primeira pessoa – corresponde à de milhares de pessoas acolhidas pela Fazenda de Esperança

por Web Master   publicado às 00:00 de 14/08/2019, modificado às 16:08 de 14/08/2019

A inspiração

Onde está a escravidão?

Sinto tanta alegria no coração, Senhor, talvez porque, nesse momento, tudo te dei.

Não ter e não ser: não ter o que acreditava meu e o que sabia teu.

Não ser para ser Tu.

Sei que ainda muito me espera para sofrer por ti, mas Tu, que és luz e alegria, vida e ressurreição, verdade e beleza, faz que eu te veja e te sinta em véu de cruz, sob o véu da cruz.

Porque eu sei que a cruz leva um Deus, sei que não há vazio imaginável que Tu não possas preencher, sei que a tua redenção foi plena e superabundante.

Faz que eu exprima com a minha vida a liberdade que Tu pagaste, que eu seja dela um testemunho teu, pois, se por tua causa a dor é amor, a treva é luz e a solidão é povoada e plenificada por teu Reino, onde está a escravidão que merecemos, onde estão as correntes?

 

(LUBICH, C. Ideal e luz: pensamento, espiritualidade, mundo unido. Cidade Nova/Brasiliense, 2003, p. 138)

 

O testemunho

“Aprendi a ser amiga de Deus”

Gabriela Alves da Silva

“Minha mãe veio do Nordeste para tentar a vida em São Paulo, porém, esse esforço não foi bem-sucedido. Ficou grávida de mim, mas criar uma criança em um prostíbulo era inviável e acabou me levando a um abrigo quando eu tinha três anos. Ela iria voltar para me buscar quando melhorasse a sua situação de vida. O ‘tio’ do abrigo abusou de mim quan­do eu tinha 9 anos e eu fugi para a Cracolândia. Fiquei seis anos nessa vida e fiz muita coisa errada, porque eu precisava sobreviver.

Tinha ódio dos homens, inclusive de Deus que, para mim, era homem e permitiu que abusassem de mim. Achava que esse Deus, que eu imaginava homem, também me machucaria. Eu nunca parei para ouvir o que falavam Dele, nunca conheci a sua Palavra; então só O temia.

Contraí uma dívida com um traficante e não tinha como pagar. Precisei me envolver com ele e depois voltar para a rua novamente­. Descobri que estava grávida. Tentei de tudo para abortar essa criança. Arrumava briga com a polícia e colocava a barriga para que eles me machucassem. Contudo, a barriga continuava a crescer e cada vez que eu acordava na rua, ela estava maior. Eu não entendia aquilo. Quando senti as dores, fui para um hospital de freiras, o Amparo Maternal, em São Paulo. A criança nasceu e a deixei lá. Fugi do Hospital para a rua, mas as pedras de crack que eu usava já não tinham o mesmo sabor daquela que fumei antes da criança. Eu fiquei destruída.

Um dia, eu estava deitada, muito drogada, com uma coberta em cima de mim, na rua, e vi um sapatinho preto. Era uma freira me oferecendo ajuda. Achei que ela era louca de estar naquele lugar. Falou-me da Fazenda da Esperança. E ficou insistindo. Eu a tratava mal e fiquei relutando durante oito meses, porque não acreditava nesse amor. Ela me falava de Deus e eu não tinha interesse de conhecê-Lo. Ela continuava dizendo que Ele tinha um projeto para a minha vida, que Ele me amava. Só que eu estava com tanto desamor que não me interessava conhecer quem Ele era. Eu não entendia como alguns tinham família e eu não, porque eu vivia na rua e outros, não. Se Ele era Deus, se Ele era bom, por que eu sofria tanto? Tinha dificuldade com Ele. Todo mal que eu podia fazer para destruir o ser humano, eu fazia porque não acreditava n’Ele.

Leia outras histórias de vida da Fazenda da Esperança no livro Tabebuías, da Cidade Nova

Foi quando comecei a me sentir acolhida e amada por essa irmã e, nesse estado, aceitei vir para a Fazenda da Esperança. Meu processo de recuperação foi muito complicado, porque eu não me aceitava como a Gabi, como alguém em quem o Pai pensou. Na adoração, eu sempre estava distante, porque não me sentia digna, me sentia um lixo, muito suja para chegar perto de Deus. Eu não me sentia perdoada por Deus. E eu sempre ouvia falar que a recuperação era à base do perdão e eu tinha muita vontade de perdoar a minha mãe. No fundo, todo esse meu comportamento negativo na Fazenda era para me livrar desse peso. Eu não conseguia perdoar a minha mãe, porque a culpava de tudo o que ocorreu comigo. Eu a julgava, mas acabei sendo igual a ela.

Um dia, quem conduzia a adoração pediu para olhar para a Eucaristia. E eu a encarei. Foi quando senti que Deus me perdoava, me acolhia do jeito que eu estava, pecadora caída. E eu falava para Deus que eu só precisava de uma chance, de um recomeço, de uma nova oportunidade. E pedi para perdoar minha mãe, porque não aguentava mais sofrer. E entendi que eu estava repetindo a história dela. E Deus me devolveu meu filho, porque eu acredito que foi Ele que me deu, depois de mais de um ano de tê-lo abandonado. Tive muita dificuldade de conviver com meu filho, porque ele me trazia o meu passado à tona. Sofri muito, mas a misericórdia de Deus por meio da Fazenda foi grande, amou-me e me ensinou a ser mãe.

Hoje, Deus me deu a graça de ser ministra da Eucaristia, e eu me admiro com sua misericórdia, porque me pergunto como uma mão que fez tanta coisa errada pode ter a chance de dar Jesus para os outros. Eu sei que Deus me quer, porque Ele é um Deus de amor. Eu me lembro sempre de como ele agiu com Maria Madalena. Se há onze anos consigo estar de pé, estar na sobriedade, cuidar de meu filho e ser responsável por uma Fazenda, é justamente porque tenho esta ligação com Deus. Eu sou amiga de Deus. Aprendi a ser amiga de Deus. Quero viver o oposto do mundo, ser melhor. Sei que Ele vai me ajudar a tirar as carências do meu coração, vai me proteger. E sou fruto da misericórdia de Deus e eu quero ser sempre ­grata pela sua misericórdia infinita. Sou mãe, cuido do meu filho; ele é feliz, estuda, vive comigo em nossa casinha, na Fazenda. Eu me sinto feliz em fazer com que outras jovens compreendam essa graça­ de ser mãe, de aceitar a misericórdia e dar a vida por outras pessoas.”

 

Matéria originalmente publicado na Revista Cidade Nova, em março de 2019. 

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