O contador e advogado João do Vale tinha o costume de ir a pé para o trabalho, perto de casa. Um dia se perdeu e não conseguiu encontrar mais o caminho de volta. “Por três vezes isso aconteceu; tivemos que fazer boletim de ocorrência e esperar até que a polícia o encontrasse”. Se você tem um ente querido na família com Alzheimer, certamente bastaram essas poucas linhas para se identificar com o relato da enfermeira Sheilah do Vale, que, além do pai, também tem a mãe diagnosticada com a doença.
O pai, hoje em dia, se comunica apenas com o olhar, sempre distante, e a mãe já não reconhece mais os filhos. “Fico impressionada por eles não expressarem mais nenhum momento de alegria. Eles não sorriem. Conviver com o Alzheimer é desafiador, é muito doído. Mas no fundo sabemos que eles continuam sendo nossos entes amados”, conta Sheilah.
O Alzheimer se caracteriza pela perda de funções cognitivas – como memória, orientação, atenção e linguagem – causada pela morte de células cerebrais. Se diagnosticada no início, é possível retardar seu avanço e garantir mais qualidade de vida para o paciente e sua família.
De acordo com a Associação Internacional de Alzheimer, a cada 3,2 segundos um novo caso da doença é diagnosticado no mundo e a previsão é de que em 2050, haverá um novo caso a cada segundo. Estima-se que no mundo inteiro existam hoje 47 milhões de pessoas sofrendo com a demência e esse número pode chegar a 75 milhões em 2030 e a 132 milhões em 2050.
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No Brasil, não há dados consolidados. “O governo precisa fazer uma vasta pesquisa sobre a incidência do Alzheimer no Brasil, sobre como essas pessoas são atendidas, sobre como seus cuidadores são formados”, diz com certa indignação Lilian Alicke, ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) e autora de livros sobre o assunto, entre eles Doença de Alzheimer. Vivências e cuidados. A estimativa da Associação é de que o Brasil tenha hoje 1,2 milhão de casos e cerca de 100 mil novos por ano.
Alicke esteve à frente de uma conquista junto ao governo: a disponibilização de medicamentos para o Alzheimer no Sistema Único de Saúde (SUS). Este ano, o SUS também incluiu a opção de um medicamento via transdérmica (adesivo colado na pele), antes disponibilizado apenas para via oral. Essa nova opção reduz alguns efeitos colaterais nos pacientes.
Mas quem convive com o Alzheimer sabe bem que o tratamento não depende apenas de medicamentos. Quando a doença foi diagnosticada na mãe da empresária Ana Fortes (falecida poucos dias antes do fechamento dessa edição), a família providenciou uma cuidadora para fazer companhia a ela, mesmo sendo ainda bem independente: pintava, jogava e lia bastante. Depois, foi preciso colocar uma cuidadora também à noite. Atividades corriqueiras como o banho e a escolha das roupas começavam a ficar mais penosas. O banheiro foi adaptado com barras e um banco. Até que, em 2016, após uma internação decorrente de hemorragia intestinal, a doença se agravou ainda mais. A mãe de Ana parou até mesmo de andar.
“Para mim foi um momento decisivo, pois sabia que não ia conseguir mais dar conta dela fisicamente”, relembra Ana. Por indicação médica, a paciente foi internada em uma clínica com terapia ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia, equipe médica e enfermeiros à disposição. Ana a visitava de três a quatro vezes por semana. Além dela, os netos, bisnetos e outros parentes se faziam presentes.
“Fiz vários álbuns e cartazes de fotos antigas e mais novas e coloquei no quarto. Ela sempre gostava de ver e falava alguns nomes. Hoje ela se encontra em um estágio chamado de terminal. Ela não nos reconhece mais, não responde mais nada, mas continuamos a ir vê-la sempre e a falar com ela”, conta Ana.
A condição de oferecer todos esses cuidados ao paciente é o que diferencia os tratamentos realizados na rede pública daqueles da rede privada no Brasil, ainda que os medicamentos sejam disponibilizados gratuitamente.
“Pela questão medicamentosa, tanto o paciente do SUS como da rede privada tem as mesmas oportunidades. Mas o tratamento envolve mais do que medicação. Envolve alimentação adequada, higiene, um cuidador disponível para esse paciente. Envolve também estímulos, pois quanto mais ele [o paciente] é estimulado e consegue permanecer independente, realizar atividades básicas, melhor. Então, acho que o paciente do SUS fica um pouco prejudicado. Há um prejuízo mais no sentido multidisciplinar, que a doença exige”, explica Caroline Pupim, médica geriatra da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.
A atenção com o cuidador é uma demanda latente, seja qual for a situação financeira de uma família. “Cuidar de um paciente com Alzheimer é uma demanda muito grande. Tem pessoas que largam toda uma vida para cuidar de um paciente que vai piorando ao longo dos anos. Então, tão importante quanto cuidar do paciente é a gente cuidar do cuidador, porque é alguém que sofre muito ao longo desse caminho”, ressalta a geriatra.
No Brasil algumas associações – como a ABRAz, o Instituto Alzheimer Brasil e o Alzheimer 360 – trabalham com a disseminação de informação qualificada sobre a doença e formam grupos de apoio para cuidadores compartilharem suas experiências.
“Assim que começou a doença da minha mãe, procurei ajuda de outros médicos e de pessoas que convivem com o Alzheimer. Tive contato com uma associação que se encontra ao menos uma vez por mês em varias regiões de São Paulo, com profissionais que dão várias dicas de como ajudar o paciente, desde a parte psicológica, judicial etc. Compartilhar experiências é muito válido”, conta Ana Fortes.
Na ABRAz, as famílias são convidadas a falar dos problemas e os profissionais oferecem orientações e apoio. Para Lilian Alicke, esse formato propicia circular a orientação correta, pois quem participa conta o que aprendeu a outras pessoas. “Nos grupos de apoio todo mundo chora, todo mundo ri. Quando você participa do problema do outro, o seu já fica menor”, explica. “Empatia, amor, tolerância e paciência”, são as principais demandas da doença a seus cuidadores, afirma a ex-presidente da ABRAz.
O problema também fica menor quando as famílias conseguem encontrar formas criativas e positivas de lidar com a doença, mesmo em circunstâncias adversas.
A médica Gevana Souza, de 26 anos, conta, orgulhosa, que a avó sempre foi ativa e dinâmica. Quando a doença foi diagnosticada, a família de Gevana precisou se adaptar, cercar-se de cuidados e passou por diversos momentos de sofrimento. Ela e os irmãos conviveram com a avó e sentiram de perto aquela pessoa forte se esvair. Mas, aos poucos, reorganizaram a dinâmica da família e redobraram o amor, assim como aprenderam a valorizar os pequenos gestos da “nova” avó.
“Minha avó canta muito bem e sempre cantou com meu avô. Então, quando colocamos uma música que ela gosta e ela começa a cantar, é como se tivéssemos de volta a nossa guerreira. Ela nos demonstra sempre como o amor e carinho são atemporais. Quando ela percebe que estamos tristes, por exemplo, ela nos consola, assim como sempre fez. Ela nos admira e não cansa de dizer como somos lindas. Isso a doença não atingiu”, relata.
Na casa de Tânia Faria*, de 60 anos, a transformação não aconteceu somente nas funções cognitivas da mãe, hoje com 86, mas também no relacionamento entre as duas. “Até então eu não tinha um relacionamento bom com a minha mãe, com uma história de família muito complexa. Com a doença, nossa intimidade mudou. Houve uma redenção nesse relacionamento. Ela passou a ser carinhosa, amorosa, e comecei a enxergá-la de uma nova forma. A parte boa (da doença) é que a minha mãe perdeu todas as ansiedades, esqueceu as mágoas, os rancores, o que a machucou a vida inteira. De certo está lá, mas ela não abre mais essa ‘gaveta’. Ela se tornou uma pessoa leve, de muita risada.”
A mãe de Tânia, nos últimos tempos, também recebe cuidados em uma casa de repouso cinco dias por semana. Quando vem para a casa da filha, sempre é levada para passear: “Ela adora ir ao Carrefour. Coloco-a na cadeira de rodas e ela empurra o carrinho, formando um trenzinho. Ela cheira, pergunta, reconecta com algumas coisas. Pega as toalhas e diz: ‘compra que vou fazer um crochê bem bonito nessa toalha’, mesmo que ela não pegue nem uma agulha hoje. Dou ‘corda’, coloco no carrinho, depois distraio e retiro. A realidade para ela é tão fugaz que acabo optando pelo mundo da fantasia. Não fico me lamentando. Talvez se o Alzheimer não tivesse bloqueado tanta coisa nela, hoje ela estaria sofrendo”.
Cibele Lana
*Matéria originalmente publicada na Revista Cidade Nova em Outubro de 2018