Ele deixou sua terra natal e uma carreira promissora como professor de filosofia para encontrar nos menores abandonados e vítimas da violência urbana uma razão para seu ministério sacerdotal. Essa é a história do padre Renato Chiera, fundador da Casa do Menor
A inspiração
Dá-me todos que estão sós
Senhor, dá-me todos os que estão sós…
Senti em meu coração a paixão que invade o teu,
por todo o abandono
em que o mundo inteiro nada.
Amo todo ser doente e só.
Quem consola o seu pranto?
Quem tem pena de sua morte lenta?
E quem estreita ao próprio coração
o coração desesperado?
Meu Deus, faz que eu seja no mundo
o sacramento tangível do teu amor,
que eu seja os braços teus,
que estreitam a si e consomem no amor
toda a solidão do mundo.
(LUBICH, C. Desenhos de luz. São Paulo: Cidade Nova, 1996, p. 22.)
Padre quer dizer “pai”.
Diante da triste realidade de milhões de crianças e jovens que passam por privações básicas de alimentação, saúde, educação, lar e afeto, as respostas costumam não ir além da lamentação ou da culpa ao governo e à sociedade em geral. Nem todos assumem para si a responsabilidade por esse quadro. Com o padre Renato Chiera, fundador da Casa do Menor, foi diferente. “Foi para essa realidade fascinante e sofredora que Deus me enviou em junho de 1978, tirando-me de uma Itália rica e tranquila, arrancando-me da cadeira de filosofia do Liceu de Mondovi (região do Piemonte). Eu trazia no coração a vontade ou a ilusão de mudar o mundo”, conta o próprio padre Renato. Seu projeto inicial era ficar cinco anos no Brasil, onde realizaria seu trabalho missionário. Mas já se passaram quatro décadas desde que ele desembarcou por aqui.
Poucos anos depois de sua chegada à Diocese de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, o sacerdote viveu uma experiência que marcou sua vida. Certo dia de 1982, encontrou um adolescente – conhecido como “Pirata” – dormindo na garagem de sua casa. Ferido e sendo caçado pela polícia, “Pirata” foi acolhido pelo padre Renato, que acabou por inseri-lo em sua comunidade. Poucos meses depois desse primeiro encontro, o adolescente foi assassinado em frente à casa paroquial. Naquele mesmo mês, outros 36 adolescentes foram assassinados na nova paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro de Miguel Couto, periferia de Nova Iguaçu. Nesse contexto, padre Renato foi interpelado por outro adolescente, marcado para morrer: “Padre, ninguém faz nada? Eu não quero morrer”. Foi impossível dormir naquela noite, conta o sacerdote.
Em 1986, como resposta concreta àquele apelo que nunca o deixou em paz, padre Renato decidiu fundar a Casa do Menor São Miguel Arcanjo, com o objetivo de acolher crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, especialmente fruto do ambiente de violência que marcava tristemente aquela região do Rio de Janeiro. O projeto, desde o início, contou com o apoio da Diocese de Nova Iguaçu, na pessoa do bispo diocesano dom Adriano Hipólito e do clero local. Mesmo assim, o começo foi difícil. Ele lembra que, naquele primeiro momento, a acolhida dos menores acontecia de forma improvisada, na varanda de sua casa, espaço insuficiente e inadequado, sem o mínimo de infraestrutura. Diante de seu apelo por ajuda à comunidade, “as pessoas abaixavam a cabeça e ninguém respondia”, lembra.
Mas a persistência e, sobretudo, a confiança em Deus e na Sua Providência – que chegava inclusive de fora do Brasil – animam o padre Renato e seus primeiros colaboradores. Eles se inspiram na espiritualidade da unidade, do Movimento dos Focolares e, em alguma medida, no carisma de dom Bosco, mestre na educação dos jovens. A ajuda em recursos materiais e humanos chegava aos poucos e sempre mais. “Ao redor dos meninos do projeto Casa do Menor, aos poucos foi tecida uma rede de solidariedade”, diz padre Renato.
Em meio a frequentes episódios de ameaças do tráfico de drogas, de justiceiros e da própria polícia, padre Renato e seus colaboradores experimentavam a alegria das conquistas, pequenas e grandes. “A Casa do Menor tornou-se o lar de quem só tem como casa o chão da rua; os educadores tornaram-se os pais e as mães; os meninos e meninas, os irmãozinhos e as irmãzinhas. Os maiores ajudavam a cuidar dos menores, e respirava-se o clima de família”, conta padre Renato. Os próprios menores assumiram a casa como sua e passaram a cuidar dela. “Os mais velhos ajudam na pintura das portas, janelas e paredes. E brigam quando meninos novatos chegam sujando a casa.” Essa postura se reflete também na recuperação da autoestima dessas crianças e adolescentes: começam a tomar banho, a se vestir melhor, manifestam o interesse de ir à escola. Muitos deles passam a viver nas chamadas casas lares, cuja marca deve ser a acolhida “de coração”. “Não queremos virar colégio ou instituição sem alma ou coração”, afirma o sacerdote italiano.
A partir de 1992, a obra criada por padre Renato Chiera cresceu e se diversificou. Naquele ano, com a ajuda de um colaborador, ferreiro de profissão, a Casa do Menor organizou os primeiros cursos profissionalizantes para adolescentes e jovens das casas lares – àquela altura já presentes em outros lugares do Brasil – e de suas comunidades. Nos anos seguintes surgiram outros projetos e obras, como a Creche na favela da Vila Cláudia (Rio e Janeiro), com atividades de alfabetização, reforço escolar, cursos profissionalizantes de informática; o Projeto Irmã Celina, estrutura onde crianças com cinco e seis anos são acolhidas para seus pais poderem trabalhar; a Casa do Menor Tinguá (Nova Iguaçu), para tratamento de meninos com dependência química; a Creche Rosa dos Ventos, que atende crianças de 11 meses a cinco anos; o projeto de atenção a crianças e adolescentes em situação de risco social em Santana do Ipanema, no sertão de Alagoas; e Casa do Menor Guaritiba (Rio de Janeiro), também voltada à recuperação de adolescentes com dependência química.
A Casa do Menor segue crescendo. Mas busca manter aquela marca que faz dela uma família para as crianças e adolescentes acolhidos. No aniversário de 15 anos de Beatriz – narra padre Renato – estavam todos presentes, meninos e educadores. Ela já não é mais uma menina de rua; formada, trabalha na cozinha. Foi a primeira vez na vida que comemorou seu aniversário. “Vocês são a minha família; você é o meu pai”, afirmou a jovem, dirigindo-se ao padre Renato. Durante a festa, outro jovem – Sérgio – contou que havia feito aniversário e ninguém tinha se lembrado dele. “Cantamos os parabéns também para ele, que recebeu a maior fatia do bolo. Seu rosto cheio de lágrimas se iluminou, comovido”, lembra padre Renato. “É preciso tão pouco para fazer feliz quem nunca foi amado.”
A Redação*
1 Relato baseado na obra Filhos do Brasil: um caminho de solidariedade na Baixada Fluminense, publicado pela Editora Cidade Nova e complementado com informações do site oficial da Casa do Menor (www.casadomenor.org).
* Com curadoria de Adelmo Galindo.
* Matéria originalmente publicada na Revista Cidade Nova de Fevereiro de 2019