Dona Emilie sempre viveu de forma independente. Viúva, morava sozinha em um bairro carioca onde havia construído amizades ao longo de pelo menos meio século. Aos 91 anos e perfeitamente lúcida, tinha uma vida bastante ativa na paróquia, com terço e missa com as amigas. Mulher forte, comunicativa e de opiniões sólidas.
Ainda assim, devido às fragilidades típicas dessa etapa de vida, a família percebeu que dali em diante ela não conseguiria mais morar só como estava habituada. “Sempre tivemos a consciência de que chegaria o momento de dar o passo e preparar o terreno para acolher Emilie em nossa casa”, afirma o genro, Anselmo Mourão.
Ele, a esposa Eliete e Natália, a filha adolescente, moram em Cachoeiras do Macacu, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Tanto eles quanto Emilie tiveram que passar por um período de adaptação que, inevitavelmente, envolveu a mudança de hábitos. Foi necessário reinventar a vida e a dinâmica familiar, de modo que todos se sentissem em casa.
Dona Emilie
Se para Emilie era preciso perder os amigos, a rotina na paróquia e toda a memória construída no Rio de Janeiro, para a família que a acolheu, era preciso reorganizar a casa. O escritório virou quarto, a varanda virou escritório e a sala de estar ganhou pela primeira vez uma televisão, antes restrita a um ambiente separado. “Foram muitas mudanças, mas que também foram importantes para ela perceber que realmente nós a queríamos conosco”, lembra a filha Eliete.
Para valorizar a experiência e a sabedoria da nova integrante da casa, eles organizaram aulas de culinária libanesa com os amigos. A “professora” Emilie, que se divertiu bastante, não deixou de ser exigente com seus alunos. Para a neta, ela virou a modelo fotográfica preferida e não demorou para a sua energia e histórias se transformarem em vídeos no YouTube. “O que ‘perdemos’? Talvez a liberdade de ir e vir quando queríamos foi transformada em convivência rica. O importante é o conteúdo e a verdade das relações que construímos”, reforça Eliete.
Emilie faleceu dois meses depois de uma grande festa em comemoração aos seus 93 anos. Na ocasião, estavam presentes os familiares, amigos de uma vida e novos conhecidos. A neta Natália, hoje com 18 anos, agradece pelo tempo em que conviveu com a avó. “Eu pude, de certa forma, voltar à infância porque passávamos muito tempo juntas, fazendo artes e trocando experiências”, lembra.
Mudar velhos hábitos e readaptar a vida faz parte de todos os que escolhem voltar a viver juntos: tanto os idosos quanto os demais familiares. Para os filhos é uma forma de retribuir a formação e o cuidado que receberam dos pais quando ainda eram crianças. Para outros, uma forma de recuperar o tempo perdido e construir relações maduras e profundas. Mas, como na experiência da família Mourão, os benefícios dessa atitude alcançam a todos.
Para os pernambucanos Hidelbrando e Josefa Pimentel, não foi diferente. Com uma ressalva: a família que encontraram depois era gigantesca. Eles não esperavam que viveriam tantas aventuras quando, há 56 anos, mudaram-se para Osasco (SP), logo após o casamento.
A filha única do casal, Roseli, aos 18 anos, conheceu um grupo de jovens que mudaria concretamente a vida da família. Logo após terminar a faculdade, decidiu que deixaria tudo para se consagrar a Deus, ao se inserir no Movimento dos Focolares. Isso implicava “deixar pai, mãe e campos”, como diz o Evangelho, para fazer parte, em primeira pessoa, da construção de um mundo mais fraterno.
“Quando ela conheceu o movimento, a casa estava sempre cheia, era uma animação só. Mas a gente não esperava que ela ia se dedicar a isso de corpo e alma”, lembra Josefa. “Já eu era um cara muito ciumento; então, quando ela disse que ia se consagrar, não foi fácil, mas eu sorria e chorava, sorria e chorava”, confessou Hidelbrando.
Roseli, depois de terminar a formação, foi enviada ao México, onde passou 22 anos. Nesse tempo, os pais viram a casa ficar mais vazia, os casais da igreja se afastarem por medo de eles “terem mudado de religião” e a incompreensão de alguns familiares que não entendiam como alguém “tinha tudo e ia embora”.
Quando Josefa adoeceu, sentiu como se tivesse ganhado muitos filhos. “Quando a Roseli não podia estar comigo, eu sentia ali vários filhos juntos. O movimento é uma família de verdade. Foi com a gente até o fim: na internação, na volta pra casa, tudo”, conta. Em uma das visitas ao Brasil, Roseli fez um convite aos pais já idosos: por que não ir morar no México com ela? Eles foram decididos a passar seis meses. Ficaram quatro anos.
Hoje, Hildebrando e Josefa moram em um dos centros dos Focolares no Brasil, a Mariápolis Ginetta, em Vargem Grande Paulista, zona metropolitana de São Paulo. Roseli, que também mora no mesmo local, mas em casa separada, diz que acompanha, sem interferir na vida de Hidelbrando e Josefa, que estão com 81 e 75 anos, respectivamente. “Eles têm a vida deles. Procuro só estar por perto”, revelou. Já Hidelbrando, discorda sorrindo: “Ela é nosso braço direito, esquerdo, é uma graça só”.
Na mesma casa onde mora Roseli, outras duas companheiras de focolare compartilham da mesma situação: Ilka Martinez e Cristina Calicchio. “A gente deixa a família por Deus e Ele nos dá de volta quando necessário. Quando não posso estar com a minha mãe, outra focolarina está com ela. Ela é a mãe de todas”, sintetiza Cristina, cuja mãe, Odette Calicchio, de 88 anos, mora a poucos metros de casa.
Dona Cotinha, como é conhecida Maria Aldina, senhora de 85 anos e mãe de Ilka, está na Mariápolis Ginetta há 11 anos. É muito amiga do casal Hidelbrando e Josefa e, segundo a filha, costuma dizer que mora “em um pedacinho do Paraíso”. “Todas as noites ela me dá um beijo e agradece pelo dia”, conta Ilka.
Pensar em colocar os pais ou avós em um asilo? Quem dá o recado é a jovem Natália Mourão: “De jeito nenhum! Never!”.
Matéria publicada originalmente na Revista Cidade Nova em Maio de 2018