Pé na estrada

Conheça o relato de famílias que deixaram tudo para se dedicar a missões em outras cidades e até mesmo em outros continentes

por Cibele Lana   publicado às 00:00 de 15/05/2019, modificado às 11:18 de 15/05/2019

Quando as irmãs Haline e Fernanda Anderson, ainda pequenas, se mudaram para a África com os pais, imaginavam que tudo não passaria de uma grande aventura em família.

Hoje, já adultas e residindo nos Estados Unidos, são unânimes em afirmar que a experiência como uma família missionária durante 11 anos agregou não só bagagem cultural a todos, como também habilidades sociais e, claro, grande crescimento espiritual.

As duas são da Igreja presbiteriana, filhas de um pastor e de uma mãe que desde os 15 anos já sentia um chamado missionário. Cerca de dez anos após o casamento, já vivenciando uma experiência missionária em Rondônia, o casal recebeu o convite de pastores africanos para viver em Angola. Em apenas dois anos, arrumaram tudo e partiram com toda a família, que incluía Haline, Fernanda e mais uma filha.

Como parte da missão, os pais compartilhavam sua formação espiritual cristã com a comunidade por meio de seminários e treinamentos, além de ajudar em ministérios e dar aulas em cursos de artesanato. Após o período em Angola, país de língua portuguesa onde a convivência com a comunidade foi bastante agradável, a família se mudou novamente; desta vez o destino foi a África do Sul.

“Lá, apesar de não haver mais o Apartheid, ainda existia segregação, então não conhecía­mos nem tínhamos como conviver com negros, o que foi um grande contraste com Angola, onde só conhecíamos negros. O país tem cultura muito europeia, então não podíamos fazer barulho depois da 18h, nem antes das 6h. Apesar de tentarmos conhecer nossos vizinhos, nenhum nunca quis se entrosar conosco”, lembra Fernanda.

Pé na estrada

“Havia diferenças culturais, mas um desafio também era o fato de alguns países [da África] estarem em guerra civil ou se recuperando de uma, por isso faltava eletricidade, água e algumas vezes não tínhamos acesso a lojas ou mercados nem a produtos higiênicos ou de limpeza”, complementa Haline.

Apesar dos desafios e dificuldades de ser uma família missionária na África, as duas relembram com carinho situações culturais até mesmo engraçadas, mas que proporcionavam uma ótima convivência com a comunidade, como o hábito de presentear com animais vivos, como galinhas ou galos. “Minha mãe teve a ajuda de algumas amigas africanas para aprender a preparar galinha para virar o frango do almoço de domingo!”, comenta Haline.

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Depois de morar também em Moçambique, a família retornou ao Brasil e mesmo enfrentando mais um “choque cultural” por ter que se readaptar à cultura, as meninas concordam em definir a experiência de ser uma família missionária como “maravilhosa”.

“Pessoalmente, me vejo muito mais adaptável do que outras pessoas da minha idade. Sei fazer amigos com facilidade e em geral consigo me dar bem com gente de diversas culturas, muitas vezes sem nem perceber as diferenças culturais. Mas acho que a maior recompensa foi que aprendi a confiar 100% em Deus! Vimos ele agir de forma incrível, principalmente quando menos esperávamos. Hoje a minha fé é o que é por ter sido criada em meio a missões”, confessa Fernanda.

Encarar o desafio de ser uma família missionária nem sempre significa mudar para outro país ou continente. Com a ebulição de comunidades leigas dentro da Igreja católica, por exemplo, há sempre o desejo de levar esses carismas para outras regiões do Brasil. A comunidade Shalom nasceu em Fortaleza, mas hoje está presente em mais de 70 dioceses no Brasil e no mundo.

Com a missão de dar continuidade a uma comunidade e consolidar o carisma Shalom em Campo Grande, Caio Lima, sua esposa, Alana, e as quatro filhas deixaram Brasília para viver como família missionária na capital sul-mato-grossense. Ali, assumiram múltiplas funções, como ministério de música, grupos de oração, retiro, eventos, cursos de formação, além de pregações.

E, apesar de a mudança ter acontecido dentro do mesmo país, a família também teve desafios a enfrentar por amor à evangelização. Caio deixou para trás um bom emprego, Alana a proximidade com a família e as quatro meninas abriram mão do contato frequente com primos e amiguinhos.

“Inicialmente, a grande barreira foi a postura reservada das pessoas daqui. Somos filhos de nordestinos e, por isso, sempre foi muito fácil iniciar uma conversa. As meninas, por ainda estarem em período de formação também apresentam certa dificuldade com o sotaque, por acharem que um ou outro está errado. Um episódio de diferença cultural foi quando mandamos para o lanche na escola cuscuz com manteiga – natural no Nordeste. Elas voltaram reclamando que ninguém sabia o que era e que não queriam levar mais. Outro aspecto que podemos destacar é que a cidade tem alto índice de divórcios. Logo, é quase um escândalo ver um casal jovem – temos 30 anos – com quatro filhas insistindo que é possível ser uma família grande e feliz”, conta Caio.

Um aprendizado se repete nas famílias missionárias que conversaram com Cidade Nova, independente da denominação religiosa: a confiança na providência divina quando a mudança bate à porta e as necessidades espirituais e materiais aparecem. “Vemos Deus providenciar desde grandes coisas, como um apartamento para morarmos, até doações de alimentos, vestuário das crianças e ainda uma bolsa de estudos parcial que nossas filhas ganharam numa escola salesiana aqui da cidade”, relata Caio.

Relatos como o da família de Caio e Alana e o da família de Fernanda e sua irmã Haline demonstram que a generosidade dessas pessoas em deixarem suas casas e seus trabalhos para se dedicar integralmente a outras pessoas e comunidades acaba por produzir uma onda de reciprocidade capaz de transformar as vidas de quem vive nessas comunidades e dos próprios missionários.

Na Encíclica Redemptoris Missio, João Paulo 2º resumiu essa relação de reciprocidade entre Deus e os missionários citando trechos da Bíblia:

“A espiritualidade do missionário conduz a isto: ‘com os fracos, fiz-me fraco (…) Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a todo custo. Tudo faço pelo Evangelho…’ (1Cor 9,22-23). Precisamente porque ‘enviado’, o missionário, experimenta a presença reconfortante de Cristo, que o acompanha em todos os momentos de sua vida: ‘não tenhas medo (…) porque Eu estou contigo’ (At 18,9-10), e espera-o no coração de cada homem”.

 

Matéria originalmente publicada na Revista Cidade Nova, em setembro de 2018. 

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