Professores parecem ter uma capacidade natural em surpreender seus alunos: por meio de uma prova mil vezes mais difícil que o esperado, sendo amigável ou trazendo um conhecimento que lhe faça repensar aquilo que já estava estabelecido na sua cabeça há muito tempo. Sejamos honestos, esse último exemplo não acontece sempre. Digamos que a teoria dos conjuntos não possui essa magia. Mas quando acontece, bate forte, e você recorda do momento como uma pequena centelha de conhecimento em meio ao caos que é a vida.
Encontrei uma dessas centelhas enquanto estava na faculdade. Discutíamos sobre pessoas com deficiência visual e deficiências em geral, quando a professora disse: “Se você pegar a palavra ‘deficiente’, e tirar o ‘de’, o que sobra?”. Eficiente
Nas aulas seguintes, o significado foi melhor explicado: todos nós somos capazes de feitos incríveis; não ter um membro ou um dos sentidos pode ser um dificultador, mas não nos transforma em pessoas incompetentes. Não devemos tratar os outros como inferiores, muito menos como coitados, incapazes. Precisamos reconhecer que eles são tão capazes quanto nós, têm dificuldades, mas são igualmente capacitados.
Pode parecer uma conclusão “nichada”, apenas para pessoas com deficiência, mas tem total conexão com outros temas, como a fraternidade. Fraternidade é uma coisa bonita: criar laços de união e respeito com pessoas de outros povos, culturas, religiões e formas de pensar. Mas, quantas vezes não acontece de, lá no fundo, tratarmos o outro como se fosse um coitado, inferior? Isso nos leva a exercitar uma fraternidade “doente”, até mesmo falsa, uma soberba disfarçada.
Nessa situação, enquanto chamamos um grupo de inferior, estamos nos colocando também como superiores. Pior: isso pode acontecer quando nem percebemos. Não é preciso ser de forma óbvia; muitas vezes, é sutil. Quando encaramos de forma torta uma cultura inteira devido a um único elemento, ao pensarmos que o outro é “cego” por seguir determinada fé, ou até quando sentimos dó de alguém. Nem sempre paramos para pensar, mas, às vezes, sentir dó pode ser uma forma de expressar superioridade.
Um cenário assim nos leva a atos dignos de pena. Destratamos os outros e nos sentimos desencorajados a ajudar e, quando ajudamos, não passa de uma ação esnobe, como se fossemos misericordiosos, detentores de grande virtude. Mas é óbvio, nesse ponto a capacidade de enxergar os próprios erros já se perdeu.
Para sermos fraternos, antes de pensarmos nos outros, precisamos trabalhar o que se passa na nossa cabeça; assumir que somos falhos, que estamos dentro de uma cultura igualmente defeituosa, com aspectos belos e outros terríveis; e principalmente, encarar que não somos guardiões de verdade absoluta!
Vale dizer ainda: a maior ferramenta à disposição para não inferiorizarmos os outros é o espelho. Se você assumir que é repleto de falhas, igual a quem está à sua frente, vai passar a entender que estamos todos juntos. Estamos todos perdidos, sem uma certeza absoluta de nada nesta existência. Mesmo a pessoa de fé mais resiliente tem seus momentos de insegurança.
Mas, isso não é motivo de vergonha ou desespero. Pelo contrário, é motivo de alegria, porque podemos começar a nos ajudar da forma correta. Não vamos ajudar porque acreditamos ter a fórmula para o sucesso e felicidade, mas sim por entender que todos nós temos algo de errado, e precisamos desse auxílio. É assim que passamos a exercer a fraternidade: quando assumimos que todos estão neste mesmo nível.
Uma forma cômica de resumir o tema (e eu amo momentos assim), já aconteceu há muito tempo, com um adesivo de carro: “Não me segue porque tô perdido”. Ou ainda: imagine que estamos todos no oceano, cada um em seu barco, navegando para onde acreditamos ser o Norte. Se seu colega estiver indo para a direção oposta à sua, não fique com raiva, nem você mesmo tem certeza de estar indo para o norte verdadeiro.
Reconheço que esse pensamento pode nos impactar um pouco. Desde os primeiros anos na escola, estamos sempre procurando bases, portos seguros em que podemos atracar sem medo. Quando aparece alguém gritando que você é falho, que alguma dessas bases precisam ser repensadas porque podem estar erradas, tendemos a entrar em crise. É meio impactante mesmo. Mas não é preciso se desesperar, porque a vida adulta saudável é essa constante mudança.
É claro que tem alguns pontos que não vão mudar, não estou aqui para dizer que você deve questionar, por exemplo, se a terra é plana. Meu objetivo é mostrar que não devemos ser arrogantes ou soberbos, e é preciso deixar a mente aberta para receber críticas construtivas. Do contrário, nos colocamos em um pedestal e começamos a diminuir quem está em volta. Tenha um senso de autocrítica, sempre lembrando que você é falho e não é guardião de uma verdade absoluta ou cultura e fé superiores.
Mas isso tudo tem lógica, afinal? Acredito sinceramente que sim. Pode acontecer daqui alguns anos eu olhar estas linhas e criticá-las, o que seria absolutamente possível. Contudo, se não mantivermos nossa mente aberta, assumindo as falhas, dificilmente vamos conseguir exercer uma fraternidade honesta, respeitar os outros e aquilo que os faz diferentes, bem como suas escolhas.
A fraternidade não vai acontecer em um ambiente de soberba. Em lugares assim, o que temos são pessoas a todo instante tentando convencer as outras de que elas estão certas e seus interlocutores errados e que, por isso, aqueles deveriam mudar de lado. Um eterno confronto para descobrir quem sabe mais do que o outro, quando na verdade, não sabem nada ou quase nada.