Durante uma reunião de avaliação coletiva do 3º Congresso Popular de Educação para a Cidadania, realizado em setembro de 2024 nas periferias de Porto Alegre, uma das pessoas presentes iniciou sua avaliação com essa afirmativa: “Política é guerra!”.
Segundo o autor, a afirmativa é resultado do fato de ele habitar na periferia metropolitana de Porto Alegre, em uma rua conhecida como a “faixa de Gaza” da cidade – uma rua que divide territorialmente diferentes facções criminosas em constante confronto. Para essa pessoa (quantas mais espalhadas pelas periferias do Brasil?) que vive a violência cotidiana e as eternas promessas/ausências das instituições políticas, que vai desidratando/matando a confiança e a esperança, não existe mais espaço para a política “paz e amor”.
Fato é que essa afirmativa tem potencial para nos fazer refletir, especialmente aqueles que acreditam e trabalham ancorados no horizonte conceitual da política como “amor dos amores”, isto é, uma política que está enraizada no princípio sorfraterno2 e que se materializa por meio da “arte de amar”.
As pessoas que são próximas de quem habita essa realidade dolorida não terão dificuldade para compreender a dor e a raiva que movem essa gente e, em especial não será difícil compreender a própria afirmativa. Se habito espaços violentos em que a política não se faz presente, parece natural que o nosso horizonte político seja moldado por essa experiência de cotidiana de “guerra”, carências, dificuldades, sofrimento, de múltiplas e necessárias lutas por sobrevivência.
É quase lógico considerar que, para a maioria das pessoas que vivem esse contexto de violência, o próprio contexto molde o horizonte utópico da política, um horizonte utópico marcado pela não política.
O problema se torna grave quando esse cotidiano de “guerra”, de violência, resultante da ausência das instituições políticas, acaba por impregnar o nosso perceber/viver a política como guerra; guerra não no sentido de luta política, mas no sentido de aceitar o uso de armas para resolver o problema da ausência da política. E quando aceitamos a utilização das armas para resolver problemas sociais (econômicos, territoriais etc.) em nossos microterritórios, estamos decretando a falência da política como instituição capaz de organizar a sociedade.
Sem a presença e a proximidade junto às pessoas e comunidades e sem um horizonte utópico (o porquê do nosso caminhar) que a movimente, que a leve para as periferias, tanto a política e suas instituições, quanto os políticos acabam sendo sequestrados (intoxicados) por uma “política” que serve apenas aos interesses econômicos particulares e de grupos que se retroalimentam e contaminam os objetivos/as funções pensadas para os políticos, para a política e para cada um desses espaços institucionais. Como consequência, boa parte das lideranças que ocupam os espaços institucionais acaba interpretando, corrompendo ou criando leis, políticas públicas ou decisões jurídicas travestidas de bem comum, mas que na prática apenas beneficiam os próprios indivíduos e grupos. Desse modo, reforçam e ampliam o número de pessoas que já não confiam mais nos políticos, na política e nas suas instituições, além de fortalecerem nas pessoas a compreensão de que a política de fato é guerra.
Em outras palavras, se aceito fazer política sem alma, sem humanidade, o resultado é demasiado duro, dolorido, desumano, tanto para aqueles que usam da política para benefícios particulares ou de grupo, quanto para aqueles que sofrem a ausência das políticas públicas, das instituições no seu território e que são dominados pelas forças das milícias e do tráfico.
É fácil constatar que os espaços em que a política e suas instituições faltam, não se fazem presentes, mesmo com a presença dos políticos, são marcados fortemente pela falta de confiança das pessoas para com a política. E as pessoas, mesmo se inconscientes, sofrem na pele essa falta. “[...] E a falta é a morte da esperança [...]”, como bem nos lembra Nando Reis em sua música “Por onde andei”.
Para aqueles que acreditam/vivem por uma política compreendida como “amor dos amores”, se faz necessária/o e urgente uma reflexão/um reconhecimento de que viver o amor na política não deve ser algo amorfo, sem força nem capacidade de incidência, de luta, de transformação. Viver efetivamente o amor na política requer urgentemente presença e proximidade em todos os espaços políticos, mas especialmente naqueles em que as instituições políticas não se fazem presentes. E isso é para ontem!
As nossas lideranças políticas e econômicas, as nossas instituições (em todos os espaços e níveis – legislativo, executivo, judiciário, mídia, empresas etc.), para que sejam permanentemente lembradas e permeadas pela política como “amor dos amores”, devem tocar cotidianamente as dores, as lutas e o coração das pessoas que sofrem no dia a dia com a ausência da política, das políticas públicas, da economia.
O Movimento Político pela Unidade (MPpU) trabalha para disseminar e fortalecer essa cultura política de proximidade e presença ancorada na sorfraternidade. Esse desafio é proposto e vivenciado com toda a sociedade, em todos os espaços, para que possamos, enquanto sociedade permeada, no seu cotidiano, por uma política que ama e cuida das pessoas, sustentar e nos deixar movimentar por um horizonte utópico da política como “amor dos amores” e não como “guerra”.
Além disso, esse trabalho é realizado para que o nosso caminhar siga, transformando nosso presente político, em direção a esse sonho utópico comum de uma política grávida de amor por seu povo, pela humanidade.
Por Flávio Dal Pozzo1
1) O autor é analista de informação e comunicação na empresa pública Procempa, da prefeitura municipal de Porto Alegre. Tem mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e é membro da Comissão Nacional do MPpU/Brasil.
2) Esse princípio corresponde à expressão “sorofraternidade”, do original em espanhol sorofraternidad, que une as palavras sororidad (sororidade) e fraternidad (fraternidade). Confira artigo “‘Sorofraternidade’ e políticas públicas”, publicado nesta seção, edição de julho de 2023, páginas 18 e 19.