IGREJA Concluída uma década do seu pontificado, Francisco já deixa a marca de um governo eclesial cujos fundamentos têm raiz em uma vida genuinamente evangélica. Essa é a análise do pesquisador cuja tese de doutorado, em fase de conclusão, tem o pontífice como objeto de estudo
EM 13 de março deste ano, o pontificado de papa Francisco, jesuíta argentino e primeiro papa latino-americano, completou 10 anos. A data é muito significativa para a Igreja Católica e representativa para quem acompanha os processos de liderança e condução de um governo caracterizado por mudanças de protocolos, análises de realidade social e abertura de caminhos de diálogo que extrapolam os muros do Vaticano: reforma da Igreja, defesa dos direitos humanos, ação em questões sociais e políticas, diálogo inter-religioso e ecumenismo, sinodalidade, temas complexos e mudanças litúrgicas estão entre as principais ações do papado.
O mestre em Comunicação Gabriel Marquim segue desde muito jovem, com entusiasmo, a ligação entre política e religião. Como jornalista, professor universitário e fundador da Comunidade Católica dos Viventes, atua em projetos sociais. Atualmente, é professor da UniNassau, em Recife.
Marquim está em fase de conclusão de uma tese de doutorado sobre o papa Francisco. Há quatro anos, o professor pensou no doutorado com o intuito de escrever sobre religião e optou por pesquisar sobre o pontífice, em razão do engajamento com a conjuntura social global. “Eu vou tentar estudar esse homem para compreender a experiência dele e relacioná-la com a realidade que nós temos e que saída seria possível para esse momento de polarização que a gente está vivendo”, afirma o pesquisador que, ao nos oferecer um olhar aprofundado, mostra-nos a autoridade sobre essa figura que chama a atenção dentro e fora da Igreja, entre as lideranças com maior evidência no mundo hoje.
O grande marco desse pontificado é colocar na centralidade da reforma que os cardeais solicitaram ao papa Francisco, na época das congregações gerais, o Evangelho. Parece óbvio um papa colocar o Evangelho no centro da condução da Igreja, mas não é tão comum assim, porque vemos nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI que eles procuraram dar certa ordem à recepção do [Concílio] Vaticano II, que mudou muito a estrutura da Igreja. É um movimento pendular; com o Vaticano II, “se abriu” a Igreja, os papas quiseram estruturar as coisas, é natural. Mais do que ordenar, o pontificado de Francisco quer recolocar o espírito de Evangelho na condução da Igreja. Não é uma oposição aos anteriores, mas é o Evangelho em uma chave de leitura da misericórdia. Isso muda absolutamente tudo no pontificado. Daí as escolhas que faz: morar na casa santa Marta; andar no carro mais simples; viajar para Lampedusa e não para um grande país; visitar países em que os católicos nem são maioria.
Como um precursor de novos caminhos: acredito que seja concretamente a maior repercussão de Francisco. O que provavelmente vai durar para além do pontificado é que ele criou um estilo de ser papa. Os próximos não podem mais retroceder a Francisco. Ele abre uma série de processos no pontificado, criando outra cultura papal: próximo, com linguagem simples e acessível, menos preocupado com regras e mais com a vida das pessoas. Ele é capaz de manter a fidelidade com a tradição e fazer isso dialogar com as contingências, mudando o perfil do papado.
Papa Francisco é criticado por dois lados: os que acham que ele está indo longe demais na reforma e os que acham que ele está indo pouco longe demais. Ele se diz criticado por fundamentalistas e por relativistas. Os fundamentalistas querem que ele não mude absolutamente nada. Para esses, são a doutrina e a tradição que importam, sem diálogos com as contingências da nossa realidade. Então, Francisco diz que as críticas ao pontificado surgem daqueles que querem manter as coisas como sempre foram e daqueles que querem mudar a todo custo.
Francisco tem o apoio maciço dos cardeais. No conclave que o elegeu, eram 115 eleitores, e mesmo sem os números precisos, porque o voto é secreto, pelos vaticanistas, estima-se que teve entre 90 e 100 votos. Foi uma aprovação bem considerável. Hoje, a grande maioria dos cardeais apoia Francisco. Há alguns com resistências, mas são “dentro do jogo”, que o procuram para criticá-lo e ele gosta disso e agradece, por serem transparentes e abertos. Tem outro grupo que, segundo os vaticanistas, é formado por quatro cardeais que boicotam Francisco, criticam-no abertamente e, inclusive, chegam a sugerir a renúncia do Papa. Infelizmente, destacamos mais o dissenso do que o consenso, reforçando a discórdia; então, na verdade, quatro fazem tanto barulho que nos dá a impressão de que Francisco está sendo rejeitado.
A ideia central da tese é de que o papa Francisco propõe um caminho novo para a Igreja, que ultrapasse as polarizações e ambivalências internas e externas à própria Igreja. O objetivo é mostrar como Francisco está propondo essa Igreja que procura iniciar processos. Ele não quer resolver as coisas, nem definir tudo; quer que se comece a dar vazão a demandas e assuntos que foram silenciados. Ele lembra que, ainda cardeal, participou de dois sínodos ordinários. Ali se dizia claramente quais assuntos podiam ser falados e os que não podiam. Como pontífice, ele quer romper isso; todos os assuntos devem ser expostos.
Continue lendo o artigo na Revista Cidade Nova, edição de maio 2023. Assine sua revista!