Sob um calor de mais de 30 graus Celsius, em um dos abrigos de Boa Vista (RR), centenas de venezuelanos trabalham como voluntários enquanto aguardam oportunidades para mudar de vida. Com os colchões do lado de fora das barracas feitas de poliuretano, material que retém ainda mais a alta temperatura, as famílias refugiadas buscam alternativas às incertezas.
O casal Blanca Perosa e Victor Hernadéz veio de Pacaraima para Boa Vista depois do conflito que envolveu um grupo de brasileiros e imigrantes venezuelanos no último sábado (18/08). Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Mesmo no cenário de improviso e sem muitos atrativos, as crianças venezuelanas criam espaços para brincar e se divertir. Montado há apenas um mês, o Abrigo Rondon, o mais novo centro de acolhida da capital de Roraima, reúne 745 venezuelanos, dos quais cerca de 100 chegaram de Pacaraima, nos últimos dias.
Improviso
Alguns venezuelanos voltaram para o país vizinho, outros foram para Boa Vista onde se unem a conterrâneos – alguns abrigados e outros nas ruas em busca de uma acolhida. No Abrigo Rondon, mais da metade dos abrigados são crianças e adolescentes, além de muitas mulheres grávidas e idosos. Homens solteiros foram para encaminhados para outro abrigo.
Para acolher os recém-chegados, os próprios venezuelanos construíram barracas improvisadas. Cada unidade tem capacidade para abrigar de seis a oito pessoas. Algumas famílias dividem o espaço das pequenas casas com lençóis.
Emoção
Casada e mãe de duas crianças pequenas, a vendedora de seguros Blanca Perosa, de 37 anos, emociona-se ao lembrar o que viveu nos últimos tempos e evita recordar o que enfrentou em Pacaraima, quando os venezuelanos tiveram barracas e pertences queimados por brasileiros, revoltados após um assalto.
Abrigo Rondon 1, em Boa Vista, que recebeu cerca de 100 venezuelanos vindos da cidade de Pacaraima nos últimos dois dias. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Blanca apenas agradece por ter conseguido se salvar com a família e disse que espera se mudar em breve para outro estado do país para que seus filhos possam ter uma vida digna.
A venezuelana conta que foi muito bem recebida no Brasil antes do conflito e que as agressões não se justificam. “Não queremos usurpar os benefícios dos brasileiros. Queremos poder contribuir para o desenvolvimento do país. Não queremos roubar nada, queremos lutar pela nossa liberdade e dignidade de ser pessoas”, acrescentou.
Desafios
Do lado de fora dos abrigos, a sensação entre muitos moradores de Boa Vista é de que o governo está privilegiando os venezuelanos em relação aos brasileiros. É comum encontrar nas ruas da capital de Roraima pessoas criticando a chegada dos venezuelanos. As expressões utilizadas para definir os imigrantes são “invasão” e “praga”, entre outras depreciativas.
Agentes sociais que trabalham na assistência aos venezuelanos também já foram hostilizados. Ricardo Rinaldi, coordenador de emergências e assistência humanitária da organização não governamental Fraternidade, que abriga venezuelanos em Boa Vista e Roraima, relata que já teve dificuldades de conseguir desconto ou doação no comércio local para os imigrantes.
“Às vezes, a gente para nosso carro e eles dizem 'vocês estão ajudando essas pessoas que não merecem ser ajudadas'”, contou Rinaldi.
Segundo os técnicos que trabalham com os imigrantes, o sentimento de animosidade é ainda maior na fronteira, onde ocorreram as agressões. “Em Pacaraima, a situação é mais crítica. A população lá tem um grau de xenofobia maior, parece. A nossa equipe já foi bem insultada por algumas pessoas”, relatou Ana Maria Moreira Bruzzi, gestora de relações institucionais da Fraternidade.
Alerta
No entanto, a agência da ONU ressalta que, apesar das dificuldades, a resposta brasileira ao fluxo migratório venezuelano tem sido considerada um modelo positivo e o fenômeno da migração pode trazer benefícios e oportunidades para o Brasil.
“Experiências mostram que fluxos semelhantes podem contribuir para o crescimento econômico da região, a visibilidade internacional e um enriquecimento sociocultural. Isso pode ser verificado nos três estados [Amazonas, Roraima e Pará] que receberam refugiados nos últimos meses”, informou.
Com relação ao conflito recente de Pacaraima, o Acnur espera que os responsáveis pelas agressões físicas e verbais sejam punidos e avalia que as reações violentas são geradas por desinformação.