Como um retrato do que acontece em cursos de ciências exatas de todo o país, Gabriella Galdino, 19, é uma das poucas meninas da sua turma na licenciatura em física da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Em algumas disciplinas, como introdução à ondulatória, ela chega a ser a única em uma classe de dez alunos. “O professor sempre fala que sou guerreira”, diz a jovem, ao mencionar que outras colegas já desistiram por acreditarem que a física não era um espaço para elas.
Participação de mulheres e meninas em atividades de pesquisa deve ser estimulada e promovida em todos os níveis, segundo a UNESCO. Foto: WikiCommons/Argonne National Laboratory/George Joch
A falta de representatividade das mulheres nas carreiras de exatas, no entanto, começa antes da chegada ao ensino superior. “No ensino médio, todos os meus professores de física e de matemática eram homens”, recorda Gabriella, que estudou no Colégio Estadual Alfredo Neves, em Nova Iguaçu (RJ).
Até o primeiro ano do ensino médio, cursar física não estava entre os seus planos. “Escolheria qualquer outra área. Achava que física era muito difícil, não teria coragem de fazer.” O incentivo veio quando ela conheceu o projeto “Tem menina no Circuito“, idealizado por professoras do Instituto de Física da UFRJ, que organizam oficinas de eletrônica têxtil e em papel para despertar o interesse de jovens por ciência e tecnologia.
“Nós começamos falando de circuitos elétricos em meios alternativos. Sempre tem alguma atividade lúdica com papel, massinha ou tecido”, explica a professora e pesquisadora Thereza Paiva, que recebeu apoio do edital Elas nas Exatas para capacitar estudantes em programação básica.
Com essas atividades, além de despertar o interesse pela disciplina, que muitas vezes é apresentada aos estudantes do ensino médio de forma desconectada da vida real, ela diz que o projeto também pretende fortalecer a autoconfiança das meninas e apresentar a elas referências de outras mulheres que atuam na área. “Quando falamos para os alunos pensarem em um físico, todo mundo pensa no [Albert] Einstein, [Stephen] Hawking ou [Isaac] Newton. Ninguém pensa em uma mulher física.”
Estereótipos de gênero nas carreiras
Os estereótipos de gênero nas carreiras, observados pela professora do Instituto de Física da UFRJ, também são apresentados nos resultados da pesquisa “Elas Nas Ciências: Um Estudo Para a Equidade de Gênero no Ensino Médio”, lançada nesta semana pela Fundação Carlos Chagas e com apoio do Instituto Unibanco. O levantamento realizado em dez escolas públicas do município de São Paulo, que ouviu mais de mil estudantes e professores do ensino, mostrou que 45,7% dos entrevistados concordam com a afirmação de que certos trabalhos devem ser realizados somente pelos homens.
Para Sandra Unbehaum, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, essas percepções podem ser influenciadas por diferentes grupos que cercam os jovens, como a família, os amigos, a escola e a própria sociedade. “A escola sexista é um reflexo da sociedade. Isso é muito importante dizer para não ficarmos com uma sensação de que estamos atribuindo uma responsabilidade exclusiva da escola, como se ela tivesse que resolver essa questão sozinha. A escola está inserida em uma sociedade que é sexista, então o que acontece fora dela também se reflete nas ações internas”, avalia.
Recomendações para promover a equidade
Como recomendações para promover a equidade, a partir dos dados levantados a pesquisa também sugere ações para serem colocadas em prática nas escolas, como a criação de políticas de apoio à promoção de mulheres nas áreas das exatas desde o ensino médio, ampliação da discussão de gênero na formação inicial e continuada de professores, inclusão de temáticas de diversidade nos documentos da escola e representatividade das mulheres em diferentes funções e materiais utilizados no ambiente escolar.
A oferta em larga escala de dados e resultados de avaliações educacionais desagregados por gênero e raça também foi uma recomendação apresentada pelo estudo, que será publicado na íntegra no Observatório de Educação. “Nós precisamos de dados. Não apenas dados do governo, mas das escolas. [Temos que saber a] quantidade de diretoras, professoras de física e alunos que ganharam prêmios”, exemplifica a pesquisadora brasileira Márcia Barbosa, professora titular da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e integrante da Academia Brasileira de Ciências.
Durante seminário que debateu a equidade de gênero no ensino médio, realizado na última semana no Rio de Janeiro (RJ), a pesquisadora defendeu que as escolas precisam repensar a forma como trabalham seus conteúdos. “A construção social que determina que o cientista é [um homem] barbudo, de jaleco branco e com uma caneta no bolso não tem nada a ver com a construção do conhecimento. Temos que mudar tudo.”
Além de repensar as práticas escolares com foco em equidade, de acordo com a professora Katemari Rosa, do Instituto de física da UFBA (Universidade Federal da Bahia), a mudança também passa pela construção de ações afirmativas que garantam maior representatividade na ciência. “As mulheres mais excluídas do processo científico no país são as mulheres negras”, diz a docente, ao mencionar que o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) só começou a coletar dados de filiação étnica e racial da comunidade de pesquisadores brasileiros a partir de 2013.
Quanto mais diversa a produção do conhecimento, mais chances ele tem de apresentar novas visões. “A diversidade traz uma multiplicidade de pontos de vista que leva a um conhecimento mais diversificado, melhor e mais consistente”, afirma Alice de Paiva Abreu, professora emérita da UFRJ e diretora do GenderInSITE, um programa internacional que estuda STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática) e equidade de gênero. “Se os países não puderem aproveitar todos os seus talentos, certamente eles sofrerão em termos de desenvolvimento econômico.”
*A jornalista viajou ao Rio de Janeiro a convite do Instituto Unibanco