Há 200 anos, quando o Império português era sediado no Brasil e cerca de 15 mil membros da Corte Real se instalaram no Rio de Janeiro, o país teve a experiência de uma República por 75 dias: Pernambuco. Desafiando o controle de Portugal e buscando apoio estrangeiro para o reconhecimento do novo Estado, a revolução pernambucana foi deflagrada em 6 de março de 1817, inaugurando uma nova ordem em que ideais republicanos se misturavam a interesses conservadores das elites da região.
Bênção das bandeiras dos revolucionários pernambucanos, obra de Antonio Pareiras. Imagens cedidas pelo Museu da Cidade do Recife
Na época, o território brasileiro ainda era dividido em capitanias. A de Pernambuco incluía a comarca de Alagoas e toda a margem esquerda do Rio do São Francisco, até Minas Gerais, território hoje baiano. No Rio de Janeiro, transformada em capital do país, estava a família real, que fugiu das tropas francesas em 1808.
“Quando a corte se instala no Rio de Janeiro há uma via de mão dupla. Por um lado há a abertura dos portos, o que permite maior fluxo comercial. Em contrapartida há espoliação fiscal crescente”, conta o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), George Cabral.
Para criar a infraestrutura demandada pela corte no Rio de Janeiro, impostos eram cobrados das capitanias do que hoje é a região Nordeste. “Um exemplo é a taxa de iluminação pública do Rio de Janeiro, enquanto Recife vivia às escuras”, cita Cabral. Havia ainda a alta de alimentos provocada pela seca de 1816 e uma tensão constante entre portugueses e nativos– especialmente entre os militares, segundo o historiador, já que os homens de Portugal conseguiam promoções com mais facilidade.
Por outro lado, a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos inspiravam uma elite intelectual a projetar os mesmos ideais no Brasil. Também conhecida como Revolta dos Padres, a insurreição pernambucana teve grande influência ideológica dos eclesiásticos formados no Seminário de Olinda, onde eles tinham contato com filósofos iluministas.
“Todos os seus líderes são discípulos dos grandes iluministas do século 18, como Montesquieu. Eu encontrei os nomes de alguns desses líderes em processos da inquisição na segunda metade do século 18 por distribuir livros proibidos desses filósofos”, conta o historiador e curador do Instituto Ricardo Brennand, Leonardo Dantas.
Financiada pela elite produtora da capitania e apoiada por camadas populares em conflito com portugueses, nascia o movimento único no Brasil colonial. “Foi o primeiro movimento de independência que aconteceu de fato, que se materializou. A inconfidência mineira e a conjuração baiana não vingaram, foram reprimidos antes de ocorrer”, compara o historiador Lula Couto.
Ideias republicanas levam a inovações
A inspiração dos revoltosos nos ideais iluministas que nortearam a Revolução Francesa trouxeram mudanças significativas ao Estado então criado. A Lei Orgânica da República de Pernambuco foi instituída até que a Constituição fosse criada – para isso, uma Assembleia Constituinte seria planejada, uma vez que as comarcas revoltosas se unissem em torno da independência. Ela deveria ser convocada em no máximo um ano, segundo a legislação, sob pena de devolver ao povo a escolha por seus líderes e modo de governo.
O documento trazia inovações como a separação entre os poderes, tirando de uma única pessoa ou instância a prerrogativa de criar e revogar leis e realizar julgamentos. Nessa organização provisória, os juízes eram eleitos pelo povo de cada distrito. Além disso, cria-se um Colégio Supremo de Justiça para decidir em última instância sobre causas cíveis e criminais.
Foi decretada a liberdade de culto, embora relativa. A Igreja continuou vinculada ao Estado: a religião oficial era a Católica Romana. O bispo de Pernambuco, por exemplo, fazia parte do Conselho Legislativo, determinado pela lei orgânica. Na legislação “são toleradas” outras “seitas cristãs”; não há menção aos cultos de matriz africana, por exemplo. Pelo documento, era vedado incentivar o conflito entre as vertentes e perseguir pessoas por “motivos de consciência”.
A liberdade de imprensa também é proclamada, até então inexistente em território brasileiro. E a relação com os europeus e demais estrangeiros residentes na região foi mantida sob uma condição: seriam habilitados para trabalhar no governo caso fizessem a adesão ao partido da Regeneração e Liberdade.
Liberdades de uns, escravidão de outros
Embora revolucionários tenham proclamado liberdades que ainda não existiam no Brasil, um dos pilares da formação do país se manteve intacto: a escravidão. “A chegada do pensamento liberal ao Brasil promove uma ambiguidade impressionante. Você começa a falar de liberdade e igualdade em uma terra na qual a escravidão está presente em quase todos os aspectos da vida. Praticamente toda a sociedade contava com escravos”, diz George Cabral.
Tendo entre os líderes revolucionários grandes agricultores de cana-de-açúcar a algodão, financiadores da revolução pernambucana, o grupo não tocou no sistema escravagista. “Esses senhores tinham a propriedade do escravo como algo legítimo. O ideal de liberdade se limitava à política, ao comércio. O negro escravizado não era visto como um atentado à liberdade na época”, conta o historiador Lula Couto.
Leonardo Dantas e George Cabral afirmam que havia a intenção de parte deles em fazer a abolição, mas ela não se concretizou. “A escravidão foi o grande xis da questão da revolução. Nossas elites são extremamente conservadoras até hoje, devem ter pensado que essas ideias republicanas são muito bonitas, mas poderiam liberar tensões sociais que levariam à perda do controle”, diz Cabral.