“Na verdade, me sinto em casa ao partilhar este momento com irmãos e irmãs que – não tenho vergonha de o dizer – ocupam um lugar especial na minha vida e nas minhas opções. Estou aqui, porque quero que saibam que suas alegrias e esperanças, angústias e sofrimentos não me são indiferentes. Sei das dificuldades que enfrentam, todos os dias! Como não denunciar as suas injustiças”?, questionou o Pontífice.
Papa Francisco chega à Universidade de Nairóbi, no Quênia, para celebrar uma missa. Foto: Presidência da República do Quênia
Desta forma, o Papa se deteve em um aspecto que os discursos de exclusão não conseguem reconhecer ou parecem ignorar: a sabedoria dos bairros populares. Citando a sua Encíclica “Laudato Si”, o Pontífice explicou que “se trata de uma sabedoria que “brota da resistência obstinada do que é autêntico, dos valores evangélicos que a sociedade opulenta, entorpecida pelo consumo desenfreado, parece ter esquecido”.
Vocês, acrescentou Francisco, são capazes de “tecer laços de pertença e de convivência que transformam a sua existência em uma experiência comunitária, onde são abatidos os muros e as barreiras do egoísmo”. E ponderou:
“A cultura dos bairros populares, permeada por esta sabedoria particular, tem características muito positivas, que são uma contribuição para o tempo em que vivemos; ela se exprime mediante valores concretos de solidariedade, dar a vida pelo outro, preferir o nascimento à morte, dar sepultura cristã aos seus mortos, oferecer hospitalidade aos doentes, partilhar o pão com quem tem fome, ter paciência e fortaleza nas grandes adversidades. Esses valores são baseados nisto: todo ser humano é mais importante do que o deus dinheiro. Obrigado por nos lembrar que existe este outro tipo de cultura!”.
Neste sentido, o Papa quis começar a reivindicar estes valores, que não são cotados na Bolsa: valores que não são objeto de especulação e nem têm preço de mercado. O caminho de Jesus teve início na periferia, afirmou o Francisco, entre os pobres e pelos pobres. Reconhecer isso não significa ignorar a terrível injustiça da marginalização urbana. As feridas provocadas pelas minorias que concentram o poder, a riqueza e esbanjam egoisticamente enquanto a crescente maioria deve se refugiar em periferias abandonadas, contaminadas, descartadas.
Isto se agrava ainda mais, frisou o papa, diante da injusta distribuição do terreno que, em muitos casos, leva inteiras famílias a pagarem aluguéis abusivos por habitações em condições imobiliárias completamente inadequadas. O Papa recordou ainda o grave problema da sonegação de terras por parte de “empresários privados” sem rosto.
Aqui, o pontífice referiu-se a outro grave problema: a falta de acesso às infraestruturas e serviços básicos, de modo particular, à água potável: “O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas. Negar a água a uma família, sob qualquer pretexto burocrático, é uma grande injustiça”.
Este contexto de indiferença e hostilidade, de que sofrem os bairros populares, se agrava, disse o Papa, quando a violência se espalha e as organizações criminosas, ao serviço de interesses econômicos ou políticos, utilizam crianças e jovens como “bala de canhão” para os seus negócios sangrentos. E exortou:
“Peço a Deus que as autoridades assumam em conjunto o caminho da inclusão social, da educação, do esporte, da ação comunitária e da tutela das famílias, porque esta é a única garantia de uma paz justa, verdadeira e duradoura. Estas realidades são uma consequência de novas formas de colonialismo, que pretendem que os países africanos sejam peças de um mecanismo e de uma engrenagem gigantesca. Na verdade, não faltam pressões para que sejam adotadas políticas de descarte, como a redução da natalidade”.
Por fim, Francisco propôs retomar a ideia de uma respeitosa integração urbana, sem erradicação e paternalismo, sem indiferença e mero confinamento. A dívida social e ambiental para com os pobres das cidades pode ser paga com o direito sagrado dos três “T”: terra, teto e trabalho.
O Papa concluiu seu discurso com o seguinte apelo:
“Quero chamar a atenção de todos os cristãos, especialmente dos Pastores, para que renovem o impulso missionário; tomem iniciativas contra as tantas injustiças; envolvam-se nos problemas dos vizinhos e os acompanhem nas suas lutas; salvaguardem os frutos do seu trabalho comunitário e celebrem juntos todas as vitórias, pequenas ou grandes. Esta é uma tarefa talvez a mais importante, porque os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”.
Rezemos, trabalhemos e nos comprometamos, disse por fim o Papa, para que cada família tenha um teto digno, acesso à água potável, energia para iluminar, cozinhar e melhorar suas casas; que todo o bairro tenha ruas, praças, escolas, hospitais, espaços desportivos, recreativos e artísticos; que todos possam gozar da paz e da segurança que merecem.
O bairro de Kangemi
Kangemi é um bairro onde se encontra uma das favelas de Nairóbi, situada em um pequeno vale, que confina com a favela de Kalangware. Kangemi conta com uma população multiétnica de mais de 100 mil pessoas, cuja maioria pertence à tribo Lubya. A paróquia local conta com cerca de 20 mil fiéis e é dedicada a São José Operário. Confiada aos Padres Jesuítas, possui um ambulatório, um Instituto Técnico Superior e um Centro de Assistência às mães mais necessitadas e diversas iniciativas profissionais