Apesar da condenação, benefícios concedidos no cumprimento da pena a alguns dos réus no caso do assassinato da missionária Dorothy Stang mantêm a sensação de impunidade comum a casos de homicídios no campo. Ela foi morta em Anapu (PA) no dia 12 de fevereiro de 2005. Depois de vários julgamentos e até mesmo do cancelamento de um veredicto, os dois mandantes do crime, Vitalmiro Bastos de Moura e Regivaldo Pereira Galvão, não estão atrás das grades.
Cruz em homenagem a Dorothy no local onde a missionária foi assassinada. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Há ainda mais três envolvidos condenados pela morte da missionária. Clodoaldo Batista, um dos autores do assassinato, condenado a 18 anos de prisão, cumpre pena em regime semiaberto em um centro de recuperação em Belém. Rayfran das Neves Sales, autor dos disparos, foi condenado a 27 anos de prisão, cumpriu quase nove anos na cadeia e teve direito à progressão de regime, com prisão domiciliar. Em outubro de 2014, entretanto, ele foi detido novamente acusado de envolvimento em outro assassinato. Amair Feijoli Cunha, indicado como intermediário e condenado a 17 anos, cumpre prisão domiciliar em Tailândia, no sudeste do Pará.
De todos os cinco envolvidos no crime, apenas Regivaldo Galvão, condenado a 30 anos, não cumpriu pena, pois aguarda em liberdade um recurso no Superior Tribunal de Justiça.
Para a irmã Jane Dwyer, que conviveu com a missionária e pertence à Congregação de Notre Dame de Namur, não há como fugir de um clima de indignação, resultado do sentimento de que muitos criminosos continuam impunes. “Tem um ditado que na Amazônia, a impunidade mata e desmata. Está falado. Mata e desmata. E continua”, desabafa a freira.
Luísa Vírginia Morais, fundadora do Comitê Dorothy, entidade que acompanhou os julgamentos e fez pressão pela condenação dos acusados, avalia que o episódio é apenas um entre os vários que despertam a sensação de impunidade nos casos de violência no campo no Pará.
Diversas entidades defenderam a federalização do caso, que acabou sendo negada. “De certa forma, a gente tem uma avaliação de que foi até bom [o caso não ser federalizado] porque a Justiça do Pará negou habeas corpus aos pistoleiros, ao intermediário, aos mandantes. E em outras situações era concedido o habeas corpus para que pistoleiros respondessem em liberdade, até que se esgotassem todos os recursos”, explica.
Números da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, dos 1.270 casos de mortes no campo (com 1.680 vítimas) registrados entre 1985 e 2013, apenas 108 chegaram a julgamento. Isso representa 8,5% dos episódios de violência registrados nos últimos 30 anos, ou seja, menos de um em cada dez casos foi concluído pela Justiça.
Ainda segundo dados da CPT, apenas 28 mandantes foram condenados e 13 foram absolvidos no mesmo período. Entre os executores, 86 foram responsabilizados pela Justiça e 58 absolvidos em todo o Brasil.
Em 2008, a absolvição do fazendeiro Vitalmiro, conhecido como Bida, causou indignação entre representantes da sociedade civil que acompanham o caso. Ele havia sido condenado em 2007 por ter encomendado o crime, mas solicitou um novo julgamento com base no Código Penal Brasileiro que estava em vigor e foi absolvido. Até então, esse pedido era permitido nos casos em que o réu era condenado por um júri há mais de 20 anos. Depois do julgamento de 2008, ele foi submetido a mais dois e novamente condenado a 30 anos de prisão. Atualmente, ele cumpre a pena em regime semiaberto, em Altamira (PA), com prisão domiciliar provisória por problemas cardíacos.
O escândalo causado pelo pedido de novo júri após a primeira condenação acabou gerando modificações na legislação penal que hoje não permite que condenados há mais de 20 anos façam esse tipo de solicitação.
Para o promotor de Justiça Edson Cardoso, o caso do assassinato da irmã Dorothy pode ser considerado uma exceção entre os crimes cometidos no campo, já que os mandantes foram condenados. No entanto, de acordo com ele, que atuou na acusação em todos os julgamentos, a falta de provas acabou livrando outros suspeitos do que ficou conhecido como “consórcio” para matar a missionária.
“Infelizmente não puderam sentar no banco dos réus porque nós não pegamos aquela prova decisiva. Por exemplo: teve uma pessoa que foi com as irmãs oferecer um veículo para elas para servir para a congregação”. Segundo ele, o veículo era novo e foi oferecido com o objetivo de seduzi-las. De acordo com a denúncia que a promotoria recebeu, como as irmãs não aceitaram o “presente”, partiu-se para o plano B: matar a missionária.
“Infelizmente essa pessoa [que fez a denúncia], com medo, desapareceu, saiu de Anapu, mora em outro estado, nós não conseguimos encontrá-la”, afirma.
Para o promotor, a interpretação de que o caso continua impune é fruto de um desconhecimento técnico sobre a legislação criminal brasileira. “É um sentido de impunidade para quem não conhece a legislação, mas, para quem conhece, sabe que eles cumpriram religiosamente. Com todos os direitos garantidos na Constituição, ou seja, progressão de regime”.
Já Felício Pontes, procurador do Ministério Público Federal, aponta que a sensação de impunidade é fruto de um problema maior. “É um sistema que beneficia muito ao preso, ao condenado. A gente precisa de uma reforma na lei de execução penal para que tenhamos penas que sejam realmente cumpridas e não pena com benefícios tão extravagantes que fazem com que um crime brutal desses, de cinco pessoas condenadas a penas extremamente altas no Brasil, estarem hoje em liberdade”, avalia.