O professor Carlos Braga, do IMD (International Institute for Management Development), de Lausanne (Suíça), foi um dos especialistas consultados pela Cidade Nova para a elaboração da matéria de capa da edição de março. Nela trazemos uma reflexão sobre as crescentes desigualdades socioeconômicas presentes em todo o planeta, com base em informações do estudo "Working for the few" (Trabalhando para poucos), publicado em janeiro deste ano pela ONG Oxfam International. Confira o que o especialista pensa sobre o assunto:
CIDADE NOVA - O estudo "Working for the few", foi publicado durante o último Fórum Econômico Mundial, com o intuito de sensibilizar os participantes. Qual a importância do empresariado para a solução das desigualdades crescentes no mundo? Qual é o papel do Estado, das organizações da sociedade civil e dos cidadãos?
Foto: Divulgação/IMD
CARLOS BRAGA - A questão da desigualdade tem sido constantemente assinalada como uma das questões mais importantes em termos de riscos para a economia mundial nos últimos anos. Então o World Economic Forum [Fórum Econômico Mundial] faz uma análise dos riscos globais em que identificam quais são os ricos de maior probabilidade e impacto para a economia mundial. Então no final de 2013 e início de 2014, quando eles fizeram essa pesquisa, a desigualdade de renda foi identificada com um dos tópicos mais prementes de riscos globais a médio e longo prazo. Mas é importante reconhecer que, neste ano, quando eles fizeram novamente essa avaliação, as desigualdades de renda não aparecem entre os ricos mais dramáticos. Então, de certa forma, a Oxfam perdeu o barco, no sentido de que, se tivesse saído em janeiro do ano passado, teria tido um impacto maior em termos das percepções, porque nessa última avaliação de riscos globais [do Fórum Econômico Mundial], tópicos como o conflito entre estados, riscos geopolíticos, aparecem como mais importantes que a questão da desigualdade de renda. De qualquer forma, o tópico da desigualdade de renda está nas manchetes do mundo inteiro porque é uma situação não-convencional, no sentido de que, embora a desigualdade, em nível mundial, esteja caindo para o mundo como um todo – e isso reflete o crescimento rápido de economias como China e Índia – em nível de vários países ela está aumentando. E isso naturalmente cria tensões sociais. Um exemplo óbvio é o que está ocorrendo nos Estados Unidos. Quando ocorreu o primeiro choque da crise financeira em 2008/2009, naturalmente houve uma queda dos ganhos de capital da elite, mas depois desse ajuste inicial, a desigualdade continuou a crescer. E hoje a desigualdade nos Estados Unidos está em níveis similares àqueles que existiam nos anos 1920, imediatamente antes da Grande Depressão. A imagem que você tem, se você gosta de literatura, é o Great Gatsby, aquele tipo de ultra-milionários sendo os pontos de referência para a sociedade e com a crise financeira levando à percepção de que as desigualdades são inaceitáveis. Então é um tópico quente, o relatório da Oxfam está trabalhando em cima de um tópico quente, mas a Oxfam é mais do que tudo uma organização não governamental que tenta fazer campanhas... Então a grande mensagem da Oxfam é que para você resolver o problema de pobreza no mundo não é apenas a questão de atacar a pobreza, a miséria, aqueles vivendo abaixo de US$ 1,25 por dia, mas é também atacar as desigualdades. Isso é uma proposição controversa.
O Fórum Econômico Mundial foi criado pelo professor Klaus Schwab com base no seu “stakeholder principle”, que afirma que “a gestão de uma empresa não deve prestar contas apenas aos seus acionistas, mas também deve servir os interesses de todas as partes envolvidas, incluindo empregados, clientes, fornecedores e, mais amplamente, o governo, a sociedade civil e quaisquer outras pessoas que possam ser afetadas ou envolvidas em suas operações”. Na sua percepção, qual a distância entre esses princípios e a realidade das empresas que anualmente participam do Fórum?
O Fórum permanece um momento para as elites econômicas e financeiras e também para policy makers, ministros da fazenda, se reunirem, trocarem ideias sobre temas considerados mais prementes para a economia mundial. A proposição do Klaus Schwab para o Fórum é muito bonita no papel. A realidade é que, dependendo de que companhia e de que mercado essa companhia está operando, o mercado não perdoa, vamos dizer, se você não estiver retornando lucros aos acionistas de forma muito consistente. Isso não quer dizer que a proposta de levar em conta externalidades, o impacto sobre o meio ambiente, os impactos sociais da empresa, não seja importante. Você tem empresas como a Unilever que têm feito, ao longo dos anos, uma proposta de prestar muito mais atenção a esses outros valores do que simplesmente o retorno aos acionistas. Mas a realidade é que depende muito do mercado. Se você está num mercado em que um executivo-chefe diz que vai levar em conta os outros stakeholders [partes envolvidas] da economia com relação às atividades da empresa e a empresa não gera lucros, esse executivo não vai sobreviver por muito tempo. Então é uma questão de equilíbrio. Agora, há uma consciência de que o aumento da desigualdade acima de um certo patamar certamente cria pressões políticas que podem ser muito contraproducentes, muito negativas para a sociedade como um todo. O Brasil mesmo experimentou isso. Basta lembrar que o coeficiente Gini, que é uma medida da desigualdade, chegou a ser alto, da ordem 0,63, por volta de 1989. Isso era um momento de grande falta de estabilidade macroeconômica, nós estávamos tendo episódios de hiperinflação e naturalmente os mais pobres são aqueles que têm mais dificuldades de se defender contra a inflação e isso acelerava o processo de desigualdade. Desde então o Brasil tem feito um avanço significativo em termos de diminuição da desigualdade, ainda é uma das sociedades mais desiguais do mundo, mas melhorou muito comparado com a situação do início dos anos 1990. Isso em parte reflete a estabilização macroeconômica, em parte reflete o aumento da quantidade de educação que diminui, vamos dizer, o prêmio para a mão de obra mais educada e, com isso, diminui a desigualdade, e também o fato de que entre 2000 e 2010 o Brasil se beneficiou muito do aumento dos preços de commodities, que foi um impacto positivo em termos de troca que foi consistente com as vantagens comparativas do país. Se você adicionar isso a políticas de conditional cash transfer [transferência de renda condicionada], como o Bolsa-Família, deu essa melhoria na questão da distribuição de renda no Brasil. Países como a África do Sul, a Namíbia, entre outros na África, hoje estão numa situação similar à que o Brasil estava 20, 30 anos atrás, com um Gini de 0,6. E se no Brasil o Gini por volta de 0,53, algo dessa magnitude, ainda coloca o país entre as sociedades mais desiguais do mundo, isso cria naturalmente tensões sociais, tem uma correlação alta com criminalidade etc. Mas a verdade é que no caso brasileiro, a situação, do ponto de vista temporal, a situação vem melhorando. E na África e em algumas partes da América Latina, a situação vem piorando.
As soluções propostas no estudo da Oxfam – como a tributação progressiva e regulação financeira – são possíveis sem a intervenção dos Estados e a regulação do direito internacional? Como viabilizar essas soluções se os Estados, como também mostra o relatório, são fortemente influenciados pelo poder econômico que devem regular? Como sair desse círculo vicioso?
Tem os dois lados da moeda. Certamente o poder econômico e as grandes empresas vão tentar lobby para evitar uma tributação excessiva. A mesma coisa com relação às pessoas mais ricas. Você tem exemplos, que a Oxfam menciona, como o Bill Gates, o Warren Buffet etc., pessoas que decidiram doar uma parte significativa das suas fortunas para causas filantrópicas, mas a realidade é que eles ainda são uma minoria... Varia muito de cultura para cultura, em termos de quanto os milionários ou bilionários estão interessados em jogar essa carta filantrópica. Agora, uma coisa que complica também a implementação das propostas do tipo da Oxfam é que você não tem um governo mundial – não que eu diga que devamos ter – mas quando você propõe o aumento da tributação sobre o capital, uma tributação progressiva... se você não convencer a Irlanda, se você não convencer os paraísos fiscais a fazerem a mesma coisa, você vai ter simplesmente fuga de capital para esses países, criação de empresas artificiais para explorar as vantagens fiscais que você tem a possibilidade de arbitragem entre diferentes sistemas fiscais. Então você precisa de coordenação internacional. Essa é uma área em que a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], por exemplo, em Paris, vem batalhando, há muito tempo, para tentar harmonizar as políticas tributárias ao redor do mundo, mas os resultados são, vamos dizer, ainda incipientes, porque mesmo dentro da OCDE você tem grandes diferenças entre países como Luxemburgo e Irlanda, num extremo, e outros países como Suécia e EUA, na média, em termos de tratamento de ganhos de capital.
O estudo mostra que o 1% mais rico ficou com 95% por cento do crescimento pós-crise financeira desde 2009, enquanto os 90% mais pobres ficaram mais pobres. Sabemos que a maior parte desses recursos vieram dos Estados. Como o senhor vê essa realidade do ponto de vista ético e quais podem ser as suas consequências sociais e políticas?
Como eu disse a Oxfam é uma ONG de campanha e então eles começaram agora essa campanha em que eles estão basicamente levantando essa bandeira de que você precisa aumentar a tributação dos seguimentos mais ricos da sociedade, aumentar a tributação dos ganhos de capital e que isso é importante na batalha mais geral da questão da pobreza. Eu não vou discutir se isso é necessário ou não para você atacar a pobreza. Eu acho que há um pouco de exagero. Agora, que a desigualdade acima de um certo patamar cria custos sociais e políticos significativos, eu concordo. Mas como lidar com isso é uma questão mais complicada. Se você acredita que é um problema de avareza, de capacidade de o setor financeiro dominar esses lucros excessivos, então a solução da Oxfam está correta. Se você acredita, por outro lado, que na realidade o que nós estamos vendo hoje em dia está mais associado a desenvolvimentos estruturais, como por exemplo o fato de que tecnologias estão fazendo o retorno à educação aumentar, particularmente a educação terciária, para você poder trabalhar com computadores, inteligência artificial, etc., então a solução não é necessariamente mais tributação. Não que a tributação não tenha um papel a jogar nesse processo, mas é muito mais a questão da educação. E aí a minha posição pessoal é que o júri ainda não tem uma posição definitiva sobre isso. Agora, tem estudos muito mais sérios que o da Oxfam, como o livro do Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”, que faz um argumento, baseado em séries históricas, de que você está tendo de novo um período em que o retorno ao capital está aumentando a uma taxa muito maior do que o crescimento da economia e como consequência você tem uma tendência à concentração de renda. Essa análise do Thomas Piketty, nesse livro que virou um best-seller por um bom motivo, é uma análise muito mais séria do que a da Oxfam, porque o relatório da Oxfam pega diferentes anedotas e conta uma história interessante. O Piketty chega a conclusões similares às da Oxfam utilizando bancos de dados muito mais sérios, muito mais elaborados. Nesse sentido, a tese dele é que o período pós-guerra, de 1945 até 1975, que foi um período em que nós vimos as desigualdades, particularmente nos países industrializados, declinando, foi uma exceção, porque foi o período que marcou a reconstrução das economias da Europa, do Japão e o estoque de capital estava bastante depauperado por causa da guerra. Então com isso você teve uma melhoria, em termos relativos, de distribuição de renda. E o ponto que o Piketty faz é que nós estamos novamente entrando numa fase que vai nos levar a situações similares às que foram observadas no século 19 em termos de concentração de renda. E para evitar isso ele então recomenda a tributaçãoo progressiva, aumentando a tributação sobre os ganhos de capital. Não concordo plenamente com as recomendações, eu acho que o investimento em educação é uma variável crítica, mas, de qualquer forma, eu acho que a análise dele é muito mais elaborada que esse relatório da Oxfam. Agora, de certa forma, a Oxfam está chegando às mesmas conclusões que ele, mas por caminhos distintos.
No Brasil, embora tenha havido uma diminuição da pobreza e das desigualdades nas últimas décadas, ainda há uma grande distância entre ricos e pobres e ainda enfrentamos grandes problemas nos serviços públicos básicos, como saúde e educação. Na sua opinião, quais devem ser os próximos passos no país?
A educação em termos de quantidade melhorou muito no Brasil. A qualidade continua sendo muito fraca e esse é um problema sério que se reflete, por exemplo, na baixa produtividade da mão-de-obra brasileira. Não é que a gente trabalhe pouco, os brasileiros trabalham acima da média em número de horas por semana em relação à economia mundial. Não é que o pessoal está de papo pro ar. Mas a produtividade é baixa em geral porque a média, vamos dizer, tanto de capital humano, ou seja, educação, quanto de capital, a qualidade da infraestrutura brasileira, é muito baixa. Com isso a produtividade das nossas empresas – é claro que há exceções como a Embraer – na média é muito baixa. Então é algo óbvio que a maioria dos governos em nível federal e estadual reconhecem: uma das áreas prioritárias é exatamente aumentar a qualidade do capital humano da sociedade brasileira e isso é através de investimentos em educação. Agora, para você fazer isso, você tem que estabelecer prioridades e certamente vai ter que fazer cortes em áreas em que os recursos não estão sendo bem utilizados. É claro que você tem que tapar os buracos na área da tributação, que permitem as pessoas não pagarem impostos de forma adequada, você tem que tratar uma questão que hoje é fundamental – sempre foi, mas hoje está nas manchetes – que é a questão da corrupção e você tem que reconhecer que o aumento do estoque da educação e particularmente educação de qualidade é um processo de gerações, é um investimento de longo prazo, mas o momento para começar isso é ontem, não é hoje. Então o mais que se fizer nessa área, o melhor será em termos de diminuir as desigualdades, mas não é uma agenda fácil.
Como assegurar uma efetiva igualdade de oportunidade, trabalho decente e salários justos em um mundo globalizado, em que as grandes empresas tendem a explorar a mão de obra mais barata possível?
Isso de novo leva à questão da importância de governos terem padrões para os mercados de trabalho que evitem uma corrida para os padrões mais baixos, uma competição por baixo. É muito importante o papel do setor público nessa área, mas de novo você precisa de coordenação internacional, para evitar que, por exemplo, em Bangladesh você tenha padrões de segurança no trabalho, de salário mínimo, capacidade de se organizar em sindicatos etc. que são tão baixos que você cria essa competição que nivela por baixo a situação. Agora, uma coisa que é importante reconhecer também é que o processo de globalização, por si só, também cria mecanismos para aumentar a atenção das empresas multinacionais com relação a esses padrões. Porque se você é uma Gap, uma Nike, uma grande empresa que dá outsourcing [terceiriza] à sua produção, na China, em Bangladesh ou seja onde for, a última coisa que você quer é que amanhã tenha um desastre, um prédio desabando ou um escândalo sobre como os trabalhadores são tratados, porque isso vai afetar a sua imagem. Então, de certa forma, o processo de globalização também cria mecanismos para que as empresas multinacionais não apenas tentem utilizar os seus recursos da forma mais eficiente possível, mas também prestem atenção a padrões mínimos de condições de trabalho etc. Agora, é claro que tem empresas que evadem esse princípio. Mas eu argumentaria que entre empresas de grande porte, é muito difícil Se você tem uma participação significativa dos seus lucros nos países europeus ou nos EUA, é muti difícil ter uma situação em que você vai estar explorando esses padrões mais baixos de uma forma não-ética. Agora, você tem que reconhecer que há diferenças ao redor do mundo. A expectativa de que em Bangladesh a pessoa vá receber um salário mínimo igual ao da Suíça obviamente seria negar exatamente as vantagens da possibilidade de comércio internacional. Então é um jogo que as empresas jogam e que há naturalmente problemas em determinadas áreas, mas de uma maneira geral há também uma expectativa particularmente em grandes multinacionais de terem regras do jogo que têm um mínimo de atenção a comportamentos éticos e padrões mínimos de defesa de segurança de trabalho etc.
Gostaria de acrescentar alguma coisa?
Uma coisa que é interessante você observar é que, por exemplo, aqui no IMG, a escola onde eu sou professor, os estudantes de MBA hoje em dia tem uma diferença muito grande em termos do que eles consideram uma boa carreira. Não é apenas a questão de fazer dinheiro e ter uma carreira que vá levar a poder e riqueza, mais e mais há uma atenção a questões éticas, questões de transparência. Isso é facilitado também pela questão da tecnologia, hoje em dia todo mundo está em redes sociais, você tem informações sobre as grandes companhias de maneira muito mais ampla do que era o caso no passado. Então tudo isso também cria uma pressão em termos do comportamento de empresas que eu diria que é um processo positivo e que de certa forma vai colocar um pouco de freio a esse processo de crescimento de desigualdade.